Surfe deluxe

Surfe Deluxe, o retorno

25.4.10

Depois de longo e cabuloso inverno havaiano, depois da grande ressaca do outono, depois das grandes chuvas do Sudeste e até mesmo depois do sexto título brasileiro do Mengão, eis que ressurge, cheio de gás, o blog Surfe Deluxe.

O silêncio de tantos meses não foi planejado, mas a volta, graças a Netuno e outros deuses, sim.


Surfe Deluxe renasce, entre outros motivos, para receber o pacotão de escritos salgados que passei a produzir semanalmente para o site Waves, onde assino a coluna Leitura de Onda, e mensalmente para a Fluir, onde escrevo uma coluna homônima ao blog. Vai estar tudo aqui.


E, claro, sempre que tiver uma janela, também vou postar notas extras sobre o sensacional mundo das ondas e seus insólitos personagens.

Logo de cara, o blog oferece cinco textos, publicados na Fluir e no Waves:

"Allez-hop" fala da infinita vocação de encantador de plateias e juizes de Slater.

"Tempo, competidor implacável" é uma análise de uma temporada em que o relógio corre mais que as ondas.

"Soco no ar" é um libelo em defesa da mania do brasileiro de comemorar ondas bem surfadas.

"A próxima onda" fala do trem da nova geração, que entrou nos trilhos em 2010 disposta a descarrilar os vagões das velhas estrelas do tour.

"Surfando com critério" é uma reportagem de fôlego que levanta a polêmica em torno do suposto preconceito contra surfistas brasileiros no circuito mundial e em outros picos do mundo.

Grande abraço,

Tulio Brandão

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Allez-hop!

Allez-hop!*

Kelly Slater tocou o sino. O colunista poderia passar horas tecendo linhas sobre sua forma espetacular, a acertada volta às boas pranchas (ele usou uma triquilha round 5´7”), a incrível capacidade de renovar seu repertório de manobras , a frieza para sair das situações mais difíceis, mas essa é a explicação oficial para todas as 42 vitórias do gênio.

O surfista com mais vitórias da história sabe que, para vencer, precisa emocionar.

Kelly saber fazer isso como nenhum outro. Chegou a Bells pressionado, depois de um nono na Gold Coast. Momentos antes de sua estreia, deixou vazar a notícia de que teria fraturado o pé durante um treino. Pouco depois, uma nova bomba: o gênio iria competir mesmo machucado.

Todos se comoveram. Eu me comovi.

Kelly tinha uma tênue fratura no pé – chamada em inglês de “hairline fracture”, por ter espessura semelhante à de um fio de cabelo. Mas qual era o tamanho de seu sofrimento dentro d´água? Fui atrás de um médico, o reumatologista Arnaldo Libman, mas não teve jeito: a dor, neste caso, é totalmente variável. Por doer muito ou nada, diz Libman.

O próprio surfista disse que incomodava mais na areia do que em cima da prancha. Mas, a esta esta altura, já tinha emocionado a praia inteira. E sabia disso. Todos esperavam ver o campeão superando a dor, maior adversário de todos nós, em busca do décimo título. O drama humano tem que estar presente na vida dos campeões.
Faltava o toque final no cenário para a vitória: chamar para a sua torcida os locais. No início da competição, o surfista disse que, caso vencesse a prova, daria o troféu para a comunidade aborígene que vive na região. Devem ter tocado um didgeridoo pelo americano.

Dentro d´água, se seguisse a nova cartilha da ASP, com as tais manobras modernas, estaria perto do título. Ao mesmo tempo, Kelly surfava livre de pressão: se perdesse, a culpa era da fratura. Não aconteceu: nas cinco baterias que disputou antes da final, Kelly construiu seu caminho sem muitos sobressaltos nem grandes momentos.

Na decisão, contra Mick Fanning, as más condições do mar davam um tom cinza à bateria. Os dois surfistas erravam bastante até que, antes da sirene, o artista que encanta encaixou o último e e mais bonito ato: um Alley-oop, numa onda que nada oferecia.

Como pode um cara com o pé quebrado voltar naquela manobra? Como pode um cara com o pé quebrado recuperar o equilíbrio depois de nitidamente deixar a prancha escapar dos pés? A praia gritou. Os juízes piraram: deram-lhe um 8,9 e a liderança na final. A volta do americano à onda não foi limpa, ele recuperou a prancha na espuma.
Mas o que isso importa? Ele emocionou.

Fez como os acrobatas de circo franceses do passado, que antes de uma apresentação mais ousada, que deixaria o público em suspenso, gritavam: “allez-hop!”, que seria alguma coisa como “vamos saltar!”. Não por acaso, daí veio a expressão “Alley-oop”.
Na outra encarnação, Slater deve ter trabalhado no circo. E encantado plateias.

*coluna Leitura de Onda, publicada no dia 14/04/2010 no site Waves

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Tempo, competidor implacável

Tempo, competidor implacável*

Volto ao Waves com o prazer de quem pega a primeira onda. Não vou perder tempo com mais uma apresentação - não que eu a dispense, é que o leitor tem mais o que fazer da vida.

A coluna Leitura de Onda, no passado escrita de modo intermitente para o site, agora é semanal. A ideia é dissecar até o osso as últimas informações do mundo do surfe e, claro, falar muito do grande circo místico do World Tour e de suas maiores estrelas.

Como os melhores do mundo já estão com os pés na água fria de Bells para a segunda parada do ano, está mais que na hora de segurar a batata quente dos prognósticos de 2010.

No ofício rotineiro de repórter, sou pago para escrever a opinião dos outros. Pode não parecer, mas é mais fácil. Aqui, a tarefa é mais arriscada: o colunista tem o dever de se posicionar, de fazer apostas e de justificar os seus votos, com uma análise da temporada.

Escrever sobre o que pode acontecer é como dropar no vazio. E não vale puxar o bico.

A primeira impressão é de mudança de bastão. O ano deve ser de transição, de definição de novos padrões no surfe. Os eleitos pelos palanques da ASP já perceberam que o funil de títulos e vitórias está próximo de fechar, diante do ataque cada vez mais consistente da nova geração, liderada por um cada vez mais forte Jordy Smith.

A geração dourada de aussies - de Mick Fanning, Taj Burrow e Joel Parkinson - sabe que talvez tenha mais um ou dois anos para tentar um título mundial. Quem já levou o seu quinhão, como os dois de Fanning, trabalha com menos pressão. Mas Joel e Taj, eternos favoritos com históricos vices, estão com a faca no pescoço.

Vão surfar no limite em 2010, vão enfrentar o mais temido adversário: o tempo.

Não fosse a ambição frenética pelo décimo título mundial - e pela mala de verdinhas que isso representa - Kelly Slater talvez não estivesse na água mesmo com o pé machucado na Austrália. O cara sempre ignorou o tempo, impôs seus próprios padrões, mas deve estar cansado dessa vida.

Kelly entrou na elite em 1991, quando o título ficou nas mãos do australiano Damien Hardman, hoje um respeitado diretor de provas de eventos da ASP. Desde então, o floridiano passou sem sustos por duas décadas, sempre vencendo, ditando o ritmo.

Nos primeiros anos do século 21, depois de um período sabático, Kelly chegou a hesitar diante da fúria competitiva de um moderno Andy Irons, mas acabou neutralizando o adversário a tempo de levantar outros três canecos.

Agora, está diante de seu último - e talvez maior – desafio: reinventar o seu surfe para superar a maior mudança de paradigma do esporte desde que os garotos aussies de "Bustin Down The Door" assombraram o mundo no fim da década de 70.

Será o maior gênio da história do surfe capaz de se sair bem dessa?

O tricampeão Andy Irons fez Slater sofrer, mas quando perdeu o reinado desabou do trono de uma maneira quase definitiva. Voltou este ano, em parte recuperado do baque, em parte empurrado pela indústria – que sonha ver o havaiano de volta à forma. Irons, nos seus 100%, é um surfista moderno, dono de uma linha suave e capaz de vencer qualquer garoto.

Adriano de Souza carrega nas costas um bônus e um ônus. Com uma mistura equilibrada de talento, determinação e disciplina, o garoto conseguiu encostar nos líderes do circuito. Hoje, compete de igual para igual os top 5 – mais que isso, tornou-se um deles. E executa tão bem a rotina de manobras quanto qualquer Parkinson ou Slater. Um bônus, sem dúvida, que o coloca numa posição privilegiada na luta por um título imediato.

Mas o ônus também está aí: aos 23 anos, ele conseguiu se igualar a surfistas na casa dos 30, que estiveram na liderança por muito tempo, mas agora estão sob pressão. A questão é que vem aí o trem nova geração, onde estão, além de Jordy, Dane Reynolds, Owen Wright, Patrick Gudauskas, Dusty Paine e outros garotos abusados, loucos para impor um novo conceito ao universo do surfe de competição.

Adriano, também garoto, talvez ainda não tenha entrado nesse trem do futuro, mas tem talento e idade para pular a qualquer momento num vagão em movimento, sem cair nos trilhos. Seria a primeira reinvenção – entre muitas, espero - de seu surfe.

Jadson André é o único brasileiro que já tem vaga dentro do trem, ainda que não esteja – por enquanto – num assento de primeira classe. É uma promessa e tanto para o surfe brasileiro, num ano em que os goofies parecem estar voltando às boas com os juízes. Parece ser um cara tranquilo, que não se ilude com a fama e, mais que tudo, tem um repertório moderno, capaz de levantar notas. Na Austrália, surfou de backside – posição em que ele mesmo assume deficiências – e surpreendeu muito. Poderia ter sido mais bem julgado na Gold Coast. Na etapa de Bells, atropelou sem dó o veterano Taylor Knox e segue vivo.

Neco Padaratz já gravou seu nome na história, mas agora está no alvo do inexorável tempo. Suas rasgadas de frontside, antes uma arma valiosa, parecem ter sido atropeladas pelos novos movimentos do esporte. Nas etapas da Austrália, os juízes – talvez até injustamente - não valorizaram suas rasgadas. Suas notas pareciam nitidamente presas a um teto baixo.

Mas está aí um cara que não pode ser enterrado vivo. Neco é um especialista em reaparecer das cinzas. Não se surpreendam se ele surgir nas próximas etapas com um surf mais moderno e notas mais altas.

Marco Polo está tendo dificuldades em sua estreia no tour. Na Gold Coast, não perdeu apenas para os surfistas, perdeu para a própria prancha. Perguntei a vários amigos surfistas se eles tiveram a mesma impressão ao vê-lo surfando. Sim, para quem terá que competir contra os melhores, ele tinha muito bico sobrando e pouco drive. Em Bells, Polo melhorou bastante. No round 2, perdeu surfando bem para Jordy. E não lhe falta maturidade e vontade para driblar as dificuldades e tentar beliscar algum resultado em seu ano de estreia na elite.

Antes de acabar a onda, aparece Bede Durbidge. O australiano até parece um brasileiro, tamanha é a insistência do mainstream em não apostar nele. Mas o “fijiano branco”, como é conhecido no tour, tem virtudes que o tornam cada vez mais um candidato real: executa todo o repertório de manobras exigido pelos juízes, é um competidor frio, não teme as estrelas e pior para os outros, surfa melhor a cada temporada. Pode não ter o surfe mais bonito e vistoso do WT, mas estilo não ganha caneco. Parkinson sabe muito bem disso.

Agora é esperar para ver quem vai tocar o sino de Bells.

* coluna Leitura de Onda, publicada no dia 07/04/2010, no site Waves

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Soco no ar

Soco no ar*

O mar estava pequeno em Snapper Rocks, na Austrália. Dentro d´água, Neco Padaratz, um de nossos surfistas com melhor desempenho na história da ASP, com duas vitórias em eventos da elite, parecia competir não apenas contra Damien Hobgood, mas também contra o tempo. Quem olhasse mais atentamente, veria também, ali, boiando no line-up, o fantasma das sucessivas contusões que sempre atormentaram o brasileiro.

Mas Neco fez o que dele se espera: vestiu a surrada armadura de guerreiro e lutou com a faca entre os dentes e sangue nos olhos para atropelar seus oponentes. Achou uma direita mais certinha na bancada, posicionou-se e tirou um tubo honesto. Na saída, como se quisesse destruir os seus fantasmas, levantou os dois braços. Comemorou, vibrou com um canudo considerado usual entre profissionais do World Tour em Snapper. Ainda fez o resto da onda de modo convincente, aplicando rasgadas. Ganhou dos juízes uma nota dura: 6,9.

A comemoração pode ter pesado na nota? A ASP nasceu em berço anglo-saxão, dentro de uma cultura de gestos contidos. A euforia, a vibração e – por que não? – a alegria inocente são atributos do povo latino. Sim, nós somos mais barulhentos, mais emocionais. Reverenciamos a vida. Sérgio Buarque de Hollanda definiu o brasileiro, certa vez, como um homem cordial e aventureiro, em busca de novas sensações. No mundo dos australianos e americanos, o modelo bem-sucedido de sujeito é o do trabalhador, movido pelo desejo de uma vida segura e estável. Euforia, para o mundo anglo-saxão, é coisa de índio.

É claro que o surf, pelas sensações que desperta, admite – e em alguns casos até pede - expressões de emoção incontida, não importa a origem do surfista. Mas a escala de comemoração ainda é e será, enquanto o Brasil não estiver no topo, definida pela cultura dos gringos. Para a ASP, comemorar um tubaço nota dez em Teahupoo – lembram de um clássico do Fábio Gouveia, em que ele foi fotografado ao sair com as duas mãos para o alto? – é permitido. Mais que isso, é recomendado. Agora, vibrar com ondas medianas, nem pensar. Não importa o seu estado de espírito, vale a cultura do gesto controlado, vale a regra deles.

Há duas edições, publiquei uma reportagem na Fluir que discutia a questão do preconceito contra surfistas brasileiros no tour. Na lista de entrevistados para montar o texto, estava Ícaro Cavalheiro, um dos mais respeitados juízes do quadro do World Tour. No meio da conversa, o conterrâneo resvalou na euforia brasileira: “Não adianta. Brasileiros têm que parar de comemorar ondas consideradas boas, que estão longe da nota máxima. Talvez tenhamos esse hábito por não termos tantas ondas de qualidade. Aí, quando o brasileiro vai a Teahupoo e tira um tubo lindo que valeria um 7,5, vibra. O problema é que logo atrás, na maior da série, vem um Joel Parkinson da vida, faz um 9,5 e sai da onda sem levantar nenhum braço para o alto.”

O argumento de Cavalheiro é absolutamente pertinente do ponto de vista da competição. O atleta realmente fica enfraquecido diante dos juízes quando comemora uma onda considerada mediana nas papeletas. Sobretudo quando seu oponente é uma máquina fria e calculista de fazer notas 10 que nasceu nos EUA ou na Austrália.

Ainda assim, surfistas de todas as cores e credos começam, lentamente, a reproduzir a vibração típica do brasileiro. Volta e meia soca, o próprio Parkinson tem socado o ar para levantar a nota. O aussie não deve saber, mas o gesto foi criado por um cara chamado Pelé. Num jogo do Santos contra o Juventus (time paulista), em 1959, quando a torcida gritava a plenos pulmões ofensas racistas, ele meteu um gol de placa. Lençol em três, outro no goleiro.

Na comemoração, descarregou a sua ira com socos no ar. Quem o chamava de “macaco” emudeceu. O Brasil, que já tinha vencido uma Copa do Mundo, manteve um domínio no futebol comparável ao de australianos e americanos no surf. Assim, ditamos o padrão de comemoração entre boleiros. Soco no ar virou regra, assim como títulos mundiais da Seleção.

Dentro d´água, ainda não tomamos o bastão dos gringos. Neco não pode ser comparado nem a um Zico. E mesmo com todo o talento e determinação, Adriano de Souza passa longe da imortalidade do Rei. Mas os dois – e todos os brasileiros – devem continuar comemorando cada pequena conquista da carreira com socos no ar, ainda que sejam mal interpretados. Porque o importante não só é ganhar, e sim ganhar sem deixar de ser brasileiro. Quando isso acontecer, a comemoração vai ser barulhenta, eufórica. Os gringos podem esperar, que um dia a hora deles vai chegar.

* coluna Surfe Deluxe, edição de abril de 2010 da revista Fluir

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A próxima onda

14.4.10

A próxima onda*

Dizem que um homem nasce de novo quando descobre o que gosta. Foi assim em 1983, quando botei na água pela primeira vez uma prancha – biquilha, com o desenho clássico do Larry Bertlemann em vermelho, azul e branco. Foi assim anos mais tarde, no dia que descobri que narrar uma boa história era como sair de um tubo: o autor tinha que se colocar, encaixar num trilho coerente, usar a técnica para fluir num espaço limitado e chegar ao clímax antes da baforada. Muitas ondas se passaram até a estreia da coluna Surfe Deluxe, mas escrevê-la resgata o sonho adolescente de juntar dois dos meus maiores prazeres – o surf e o jornalismo – na mais conceituada e antiga revista especializada do Brasil. Nasci mais uma vez, amigos.

Surfe Deluxe surgiu a partir do blog homônimo (www.surfedeluxe.blogspot.com), que assino desde 2007 por diletantismo ou, sem dribles de texto, por pura vontade de escrever sobre o que eu mais gosto de fazer. Não quero enquadrar muito o perfil desta coluna, que por princípio é livre, mas a ideia é tratar das entrelinhas do esporte, resgatar histórias que passaram batidas pela correria do jornalismo factual dos sites de surf e analisar de forma justa, sem ufanismo ou complexo de vira-lata, as estrelas e tudo o que envolve o circo da ASP.

Na tenda armada para a primeira etapa da disputa pelo caneco mais cobiçado do mundo das pranchas, na Gold Coast, a evolução do esporte chamou a atenção. Não resta dúvida: uma nova onda está a caminho. A ASP parece estar cumprindo à risca as anunciadas mudanças no critério de julgamento. A maior valorização de manobras fortes com uso da borda e de manobras com alto grau de dificuldade em sequência levantou alguns surfistas e derrubou outros. Na nova ordem mundial, o americano Dane Reynolds e o sul-africano Jordy Smith estão em alta, com manobras modernas aliadas a linhas bem executadas. Já Neco Padaratz - que surfou bem na repescagem mas foi derrotado - sofreu ao perceber que suas potentes rasgadas de frontside, quando executadas sem a borda enterrada na água, não mais sensibilizam os juízes. Ainda dentro d´água, gesticulou para o palanque pedindo que soltassem mais as notas.

As surpresas nas papeletas da Austrália me lembraram uma frase de Joel Parkinson, vice por obra do acaso ano passado, publicada no meio de um desses releases oficiais da ASP de apresentação da temporada de 2010. “É um novo ano e, diante da rapidez com que o esporte está progredindo, você não pode se dar ao luxo de ficar pensando no que passou”.

O dono do surf mais bonito do mundo é um dos poucos que sabe usar a borda e as curvas sem precisar recorrer com freqüência a manobras mais extremas, mas, ao mesmo tempo, tem consciência de que o domínio de sua geração está com os dias contados. Inteligente, ele percebeu a incontrolável evolução pela qual o esporte passou nos últimos dois anos. Agora, além dos habituais e velhos bichos-papões Slater e Fanning, ele terá que conter a fúria da juventude, que chega repleta de novos truques e com o respaldo dos juízes da ASP.

A nova regra é um alento para a torcida brasileira. Afinal, temos Gabriel Medina, de apenas 16 anos, dono de um raro talento para realizar as valorizadas manobras difíceis em sequência – leia-se variações de aéreos. Já discutida na Fluir, a final do “King of Groms” da França no ano passado, quando o garoto venceu com 20 pontos em 20 possíveis, virou hit na internet. O texto do site oficial do evento, patrocinado pela Quiksilver, deixou claro o feito: “Poucos surfistas no mundo podem ostentar esse repertório de manobras aéreas, e menos surfistas ainda conseguem atingir esse nível, bateria após bateria, num ambiente competitivo.”

Antes disso, ele já tinha se tornado o mais novo surfista a vencer uma etapa WQS, ao ganhar a etapa da Praia Mole, em Florianópolis, ano passado. Em janeiro deste ano, Medina voltou a chocar o meio do surf, ao vencer com um 10 e um 9,9 a final do ISA Games da Nova Zelândia, botando os outros três adversários da final em combinação. Um amigo não segurou a onda e escreveu para uma lista de surfistas fissurados: “Acho que está surgindo o primeiro ET do surf brasileiro.” As respostas quase travaram a caixa de entrada: “joga o garoto em Pipeline” ou ainda “não pode puxar o bico em Teahupoo”.

Parece óbvio para todo mundo que ser um mestre em manobras aéreas não basta para levantar o troféu máximo da ASP. Então, vamos aprender com os erros do passado: o surgimento de um novo super-herói brasileiro em ondas pequenas não é motivo para comemoração, e sim para trabalho, muito trabalho. É hora de internar Medina pelo maior tempo possível nas melhores ondas do mundo, de moldar o seu surf também para as ondas tubulares mais difíceis, de diagnosticar seus pontos fracos e tratá-los, de formá-lo para ser um atleta completo, e não apenas mais um surfista entre tantos tops.

Para crescer, vale ainda um olhar atento nas linhas curvas e suaves do surf de Parkinson, na incrível capacidade de reinventar o esporte de Kelly Slater, na concentração avassaladora de Adriano Mineirinho, na combinação equilibrada de arcos clássicos e manobras modernas de Dane Reynolds e Jordy Smith, na determinação mortal de Mick Fanning e (por que não?) na enorme pilha de erros cometidos por quem ainda está ou já esteve no tour. Não custa nada puxar pela memória a fila de surfistas um dia considerados os melhores do mundo em ondas pequenas que, ao entrarem no tour, simplesmente morreram na praia.

* coluna Surfe Deluxe, publicada na edição de março da revista Fluir

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Surfando com critério

Surfando com critério*

Brasileiros são agressivos. Brasileiros são famintos por ondas. Brasileiros invadem o pico em grandes bandos. Brasileiros são barulhentos. Brasileiros têm uma natureza exageradamente competitiva. Brasileiros comemoram até manobras medianas em competições.

Nenhuma das declarações – dadas por alguns dos entrevistados para essa matéria - é totalmente mentirosa. E nenhuma, claro, é puramente verdadeira. A Fluir ouviu uma pá de atletas, dirigentes e jornalistas com a difícil missão de falar sobre a suposta sombra do preconceito que, dizem alguns surfistas e jornalistas, oprime alguns brasileiros no circuito mundial e até mesmo em viagens pelo mundo. Lá fora, especialmente nos Estados Unidos, parte da mídia já compartilha com a ideia de que, sim, há preconceito. Mas quase sempre atribuem o problema a supostas atitudes condenáveis de uma leva de brasileiros que não respeitaria nem Duke Kahanamoku se fosse vivo.

A justificativa resvala no preconceito. Basta enxergar as afirmações acima por outra ótica: Sunny Garcia, com histórico vergonhoso de agressões e intimidações, é um legítimo havaiano. Kelly Slater, da Flórida, vira um notório fominha dentro d´água. Quando o assunto é crowd, não há grupos maiores que os de americanos nos picos do mundo – explica-se: eles têm mais dinheiro. Falando em fairplay, os ianques gostam tão pouco de perder que lá o moleque que não nasceu para ser o quarteback da escola ganha logo o apelido de looser. E, na hora de ganhar mais um décimo na bateria, até o nobre australiano Joel Parkinson soca o ar.

Ideias preconcebidas costumam ser geradas a partir das generalizações mais primitivas. A história bem que poderia ser a seguinte: um americano toma porrada de um brasileiro na Indonésia. Volta para casa com o olho roxo e ódio público a todo negro, amarelo ou branco nascido nos domínios da terra de Pelé. Conta o episódio na mesa de um bar a outro amigo, que por acaso acabou de chegar da Costa Rica com o estômago embrulhado com 37 rabeadas aplicadas por um grupo alegre e barulhento de surfistas que falavam português. Tomando uma bud na dele, mas atento ao papo, está um juiz da ASP. Não duvide: duas experiências podem transformar 190 milhões potenciais surfistas em vilões condenados às notas baixas.

Muitos surfistas brasileiros, em algum momento, já reclamaram do peso na caneta no julgamento. É como se entrassem nas baterias da elite da ASP com uma espécie de dívida a pagar com os juízes. Dois pontos a menos, antes de rodar o cronômetro. Exageros à parte – afinal, quem perde sempre se acha mal julgado – outro dia o jornalista Roger Sharp, do site americano Surfline, deixou escapar aos seus leitores que ele também vê brasileiros sendo prejudicados em baterias. Diz o texto, publicado logo após a vitória do Mineiro na etapa do World Tour do ano passado de Mundaka, na Espanha: “Adriano venceu. Você sabe disso. A primeira vitória na ASP World Tour, ele mereceu. Ser brasileiro significa surfar 20% melhor que o outro surfista para conseguir as mesmas pontuações. Então, bom trabalho, garoto.”

Sharp foi procurado pela Fluir, mas não respondeu aos e-mails. Meses antes, pouco depois do vice-campeonato de Mineiro na primeira etapa do World Tour no ano, na Gold Coast, outro americano suicida já havia escrito um libelo em defesa de Mineirinho. Jimmy Wilson, editor associado de fotografia da bíblia do surf ianque, a Surfing, decidiu cortar na própria carne da mídia local ao comentar textos de colegas – algumas vezes da mesma revista – em que Mineiro e os brasileiros em geral eram ironizados por seus comportamentos dentro e fora d´água.

Um dos exemplos citados por Wilson foi o de Tim Baker, do site Surfline, sobre a semifinal entre Mineiro e Taj Burrow na Austrália, quando o brasileiro aniquilou o aussie. Diz o texto de Baker: ”Adriano até surfou uma até a areia, depois de um pequeno tubo, limpo, sugando a onda até a beirinha, como se ele estivesse numa praia brasileira. Velhos hábitos demoram a morrer.” Wilson retrucou: “Adriano massacrou a onda e foi totalmente mal julgado. Essa bateria contra Taj deveria ter tido uma margem (na vitória de Adriano) ainda maior que a que ocorreu. Era como se os juízes estivessem tentando deixar uma porta aberta caso Taj ensaiasse uma recuperação, assim poderiam sobrevalorizar as notas dele para que avançasse à final.”

O editor da Surfing disse à Fluir que não acredita que brasileiros sejam particularmente mal julgados no tour. “Mas eu realmente acho que às vezes os juízes empurram alguns surfistas que eles gostariam de ver bem posicionados ou outros em que há um interesse especial durante um determinado evento. Mas assim são as competições de surf ao redor do mundo. Vejo isso acontecer também na Califórnia, no circuito da NSSA (americano).”

O exemplo de Mineiro

Mineiro é o protagonista da história, por ser, hoje, o único surfista brasileiro em condições reais de disputar o título mundial com as estrelas dos países dominantes. Um top 5 legítimo. Ponderado, mas sem fugir da raia, o paulista deu a opinião sobre a existência – ou não – do tal preconceito contra brasileiros. “Este é um assunto muito falado e polêmico. Apesar de nunca ter sentido na pele alguma coisa, sei que outras pessoas passaram e passam por esse problema. Acho que cabe a nós continuarmos a trabalhar e procurar reverter isso, porque somos um povo forte em vários aspectos, inclusive na personalidade. Estamos crescendo no surf, e isso pode incomodar alguém”.

O surfista do Guarujá parece ter entendido que o caminho das pedras para o título passa, claro, por eventuais erros de julgamento. Quando questionado sobre a tal desvantagem de dois pontos levantada por Roger Sharp, ele deu um floater por cima da polêmica. “Acredito que devo procurar trabalhar para estar sempre em evolução, buscando cada vez mais surfar melhor e dentro do critério. Tenho que estudar o critério de julgamento utilizado em cada onda do circuito e estar cada vez mais íntimo, dentro dele.”

O melhor remédio, diz o brasileiro, é não ficar martelando os erros do palanque: “O julgamento do surf é subjetivo e, por isso, sempre deixa alguma dúvida. Sempre tem alguém que viu a onda de outra maneira. Com certeza, já saí achando que fui mal julgado, mas também que fui beneficiado. Por isso, prefiro não pensar nisso. Procuro visualizar o que eu poderia ter feito melhor para ter revertido o resultado e, assim, estar bem preparado para o próximo evento.”

A postura concentrada de Mineiro é tão respeitada lá fora que Jimmy Wilson acredita que o paulista pode criar um efeito inverso, ou seja, a desconstrução do preconceito contra brasileiros por um excelente exemplo. “Adriano pode se tornar um grande embaixador do Brasil, e o fato de ele ser bem visto poderia muito bem influenciar no modo como os surfistas ao redor do mundo enxergam os brasileiros.”

Teco: “juízes não têm consciência de que são preconceituosos”

Teco Padaratz já foi de tudo um pouco no circuito mundial. Ganhou etapa em final contra Kelly Slater (Hossegor, 1994), chegou a top 8 do mundo, representou os surfistas à frente da WPS (World Professional Surfers, espécie de sindicato dos top 45) e depois virou cartola, ao obter a licença para realizar a etapa brasileira da primeira divisão do surf mundial, em Santa Catarina.

Com tanta bagagem, Teco fala o que pensa: “Concordo que há uma diferença entre o brasileiro e o gringo, porém, ela é altamente involuntária. Não acredito que os juízes tenham consciência de que são preconceituosos com brasileiros. Eles apenas não acham que o brasileiro faça uma linha de surf adequada ao resto dos surfistas da ASP.” Para o manda-chuva da etapa brasileira, não é só o brasileiro que vive no fio da espada dos juízes. “Mas acontece mais com a gente.”

Bede Durbidge é um desses gringos que estariam na lista dos prejudicados eternos, se houvesse uma. Nascido na Austrália e top 5 do circuito mundial há três temporadas consecutivas, o imperturbável australiano jamais conseguiu assinar com alguma gigante de surfwear, talvez por ser contemporâneo – e conterrâneo - do estilo de Joel Parkinson e da velocidade e do sangue no olho de Mick Fanning. Apesar da vida dura longe do estrelato e de eventuais notas subestimadas, ele fechou no terceiro posto do mundo ano passado, depois de um vice-campeonato em 2008. Talvez por isso seja tão evasivo ao falar de favorecimento a surfistas. Tem toda a razão. “Não estou certo sobre essa discussão e sobre como eu me sinto a respeito disso. Acho que o julgamento é justo na maior parte do tempo. E, às vezes vai para um lado, às vezes vai para o outro. As pessoas sempre terão opiniões distintas”, driblou.

De fora, Teco pode ser mais contundente. Questionado sobre erros históricos da ASP, ele lembra a esquecida final do WCT brasileiro entre Victor Ribas e Damien Hobgood, ofuscada por ter rolado logo depois do dramático sétimo título mundial de Kelly Slater. “O Damien pegou a última onda e, com isso, o Victor acabou perdendo. As notas do brasileiro estavam nitidamente presas a uma escala menor. Não sei se foi pelo destaque do Damien virando a bateria. Quando isso acontece, muitas vezes o juiz pode ser movido pela reação incrível de um surfista querido por todos, como o Damien. Mas é preciso que fique claro que estamos falando de centésimos, e isso, na soma total, não significa muita coisa.”

Entre a serenidade e a ira

Centésimos podem fazer a diferença entre a serenidade e a ira. Vitinho, um cara conhecido pela calma, teve os 15 minutos de fúria a que todo ser humano tem direito em 2001, depois de ser prejudicado numa bateria do WQS das Ilhas Maldivas. Lançou pequenas pedras de praia na direção do palanque onde estavam os juízes. A ASP, claro, puniu o atleta. Em entrevista à Fluir sete anos depois, ele falou com tranqüilidade sobre o assunto. “Durante um tempo eu achei que era prejudicado. O episódio das Maldivas foi uma explosão, quem me conhece sabe que eu não sou um cara agressivo. Mas aconteceu e tive que conviver com as consequências. Ainda tive muito tempo no tour e, com o tempo, essas coisas são esquecidas.” A prova maior da maturidade do surfista foi vista na final do WCT brasileiro em 2005: ele perdeu – segundo o próprio organizador, de maneira duvidosa - e teve classe ao sair da água.

Preconceito ou complexo de vira-lata?

Os dirigentes não entram na onda do preconceito. Ex-juiz e head judge, o diretor da ASP América Latina, Roberto Perdigão, rechaça totalmente a ideia de que brasileiros sejam mal julgados. Para ele, o problema é técnico, ainda que seja difícil de aceitar essa realidade. “No universo do Dream Tour, os brasileiros estão em um patamar técnico inferior ao da grande maioria. Isso acaba gerando todos esses subterfúgios.” O cartola dá exemplos de brasileiros bem sucedidos para desmistificar o favorecimento a uma nação ou à outra. “Vejo os brasileiros sendo muito bem julgados e obtendo ótimos resultados no tour da ASP e, em especial, no Mundial Pro Júnior. Isso sem falar da carreira vencedora da Silvana Lima.” E conclui: “Como explicaremos o sucesso de nossos surfistas se dermos ouvido à essa teoria da conspiração?”

Perdigão fala de um “histórico e cultural complexo de inferioridade que nós temos a mania de alimentar”. Deve ser coisa parecida com velho complexo de vira-lata, criado por Nélson Rodrigues antes de a Seleção Brasileira de futebol conquistar seu primeiro caneco. Mineiro pode ainda não ser um novo Pelé, mas, diz o dirigente, tem boas chances de ajudar a construir uma nova imagem para o país. “Adriano tem sido o único surfista brasileiro da atualidade que se aproxima do padrão técnico dos surfistas de ponta do World Tour. Pela primeira vez em muitos anos, temos um surfista vencedor, com bala na agulha para disputar o título mundial. Isso melhoraria a imagem do surfista brasileiro no tour.”

Marcelo Andrade, diretor executivo da Associação Brasileira de Surf Profissional (Abrasp), reconhece que há favorecimento a alguns escolhidos em determinadas situações, mas afasta a ideia de complô contra brasileiros. “O quadro de juízes da ASP é muito bom, e melhora a cada ano. Mas, em algumas baterias de atletas que disputam o título contra coadjuvantes, nota-se que os coadjuvantes tendem a ser mais exigidos”, levanta a bola.

O próprio Marcelo se encarrega da difícil tarefa de dar nome aos beneficiados em baterias. “Não é sempre que isso acontece, somente em algumas oportunidades. O Joel (Parkinson), por exemplo, foi bem julgado no começo do ano passado, principalmente na África do Sul”, diz ele, deixando claro que o “bem julgado”, no caso, é ter sido favorecido pelos juízes. “Na final que o Kelly fez com o Mineiro no Brasil, o americano passou uma onda inteira dando floaters e ganhou nove. Será que se o Mineirinho fizesse o mesmo ganharia pontuação semelhante? De toda forma, Kelly mereceu o resultado. Esses atletas às vezes são bem julgados, mas normalmente o resultado é justo.”

Andrade lembra pelo menos duas baterias em que os brasileiros foram prejudicados. Citou uma de Guilherme Herdy contra Taj Burrow na Joaquina (em 2004, na primeira fase) e outra em que Fábio Gouveia perdeu para Damien Hardman no Rio (em 1992, na semifinal). Nos dois casos, curiosamente, os surfistas beneficiados foram campeões da etapa. Instigado a se recordar de baterias em que, ao contrário, um brasileiro foi sobrevalorizado, ele não puxou o bico: lembrou de uma vitória do Piu Pereira contra Martin Potter e outra de Dadá Figueiredo em cima de Brad Gerlach. “Os critérios eram diferentes, e minha avaliação pode estar errada. É uma opinião. No caso do Potter, ele foi mais radical. No de Dadá, eu era o técnico dele, mas assim mesmo achei que o Gerlach surfou melhor.”

Surfistas reclamaram de notas de Sunny e Occy no ano de seus títulos

Longe das cartolas, dos palanques e, agora, do tour, Gouveia – surfista brasileiro mais vitorioso da história da ASP – viveu nesse mundo louco de avaliações subjetivas e muita polêmica. Os conterrâneos largam atrás, Fabinho? “Não tenho analisado tanto as baterias ultimamente, mas já fiquei algumas vezes com essa percepção. Claro que dois pontos a menos é um exagero, mas às vezes vejo notas que poderiam ser um pouco melhores. No geral, penso que a situação já foi muito pior. Hoje, o negócio tá mais profissional.”

Ele, assim como outros, bate na tecla do queridinho da vez: “Existe, sim, e sempre vai existir a figurinha do momento. Sempre foi assim. Quando tem um cara em ascensão, a tendência é que ele seja bem julgado e, com isso, muitas vezes rola essa impressão.” Apesar do cenário hostil, Fabinho sempre evitou reclamar com juízes, para preservar sua imagem. “O atleta é munido de uma auto-avaliação. Sempre procurei não arrastar a sardinha para o meu lado durante a análise, pois você vai achar que ganhou em caso de resultado apertado. Por isso, sempre tive muito cuidado com reclamações com juízes. Achava importante dar a impressão de que minha reclamação teria algum fundamento.”

Na entrevista de Fabinho, a lista de surfistas agraciados com boas notas ganhou dois novos alternates. “No julgamento, acho que os anos em que mais reclamaram foram os dos títulos do Sunny e do Occy. Ainda assim, muito do que rola sobre erros de julgamento é folclore.”

Se há algum preconceito – ainda que seja velado – ele tem relação com a imagem do brasileiro nos picos internacionais, baseada, claro, em generalizações. O americano Marcus Sanders, editor do Surfline, concorda, e elaborou uma lista de causas para esse suposto problema:

“Acho que a questão do preconceito envolvendo brasileiros tem relação com três coisas, todas baseadas em generalizações que podem ou não ser reais, dependendo da pessoa em questão: A natureza competitiva dos brasileiros (pegam mais onda que outros dentro d´água); entram no mar com mais de dois amigos e tomam os lineups; e reivindicam notas em ondas ao fazer manobras em seções críticas (ou nem tanto).”

Wilson, da Surfing, também tenta buscar causas pro preconceito contra o país tropical. “Os brasileiros são muito conhecidos por serem agressivos e com fome de ondas. Em algumas situações em que estive durante viagens, pude perceber sinais disso. Então posso entender por que algumas pessoas têm opinião formada contra surfistas brasileiros.”

Não faltam argumentos a jornalistas americanos, mas, para Teco, o muro que separa brasileiros das nações líderes do surf mundial – EUA e Austrália – é mais visível na imprensa especializada lá de fora que nas avaliações de juízes. “O preconceito existe mais por espaço na mídia que nós não recebemos. Quando venci o Slater em 1994, a Surfer mal reconheceu que fui eu que ganhei o evento. Por outro lado, quando o americano vence uma etapa, a Fluir dá capa para ele. Você consegue ter o resto da conclusão?”, pergunta o catarinense.

O que parece é que a disputa pelo título mundial obedece à lógica cruel de todo jogo de poder: quem está lá, não quer sair; quem não está, quer entrar. Alguns bons surfistas brasileiros já ousaram bater à porta, mas enquanto um super-herói do tamanho de um Pelé – ou mesmo de um Slater – não assumir a missão de arrombá-la no estilo “Bustin down the door”, americanos e australianos farão de tudo para manter – de forma justa ou não - o cadeado bem fechado.

Desde os polinésios, a melhor onda é para poucos

A Justiça não se equilibra bem em cima da prancha desde o Havaí pré-James Cook, dos polinésios originais. Antes do século XVIII, grandes chefes, chamados de ali´is, tinham privilégios indiscutíveis: surfavam as melhores ondas, nos melhores picos e com as maiores pranchas – chamadas de olos. Se um cidadão comum entrasse na área restrita pelo código kapu (tabu, conjunto de regras que norteava os havaianos), poderia ser condenado à morte.

Uma das lendas contadas na velha tradição oral das ilhas lembra de uma disputa sangrenta entre os chefes Umi-a-liloa e Paiea. Durante a competição, a prancha de Paiea se chocou contra o ombro de Umi, que assim mesmo venceu a prova e ganhou como prêmio quatro canoas de Paiea. Apesar da vitoria, Umi guardou rancor pelo acidente: quando, mais tarde, se tornou um chefe de alto escalão, sacrificou impiedosamente o adversário em seu templo.

Box 2 – Seed, a maldição dos novatos

A regra do seed surgiu com uma missão aparentemente nobre, explicada no próprio livro de regras da ASP: evitar que os melhores surfistas se enfrentassem antes das quartas-de-final. Desta forma, os primeiros do ranking atualizado todo primeiro dia do mês pegariam apenas convidados locais de cada etapa e os surfistas com menos pontos na temporada.

A ideia foi importada do tênis, esporte com critérios absolutamente objetivos. Bola dentro é ponto. Por isso, na arena de Roger Federer o critério funciona perfeitamente. Mas no evento de surf, dominado pela imprevisível subjetividade do homem, a estrela entra na água contra o novato – ou o mal colocado – com uma vantagem muito maior que apenas a diferença técnica já existente entre os dois. Quase todos os entrevistados para essa matéria concordaram, em maior ou menor medida, que os melhores surfistas por vezes são protegidos pelo julgamento.

Portanto, nas ondas, o seed da ASP acaba se tornando um obstáculo real ao desenvolvimento de novos atletas no circuito e, claro, à mudança de trono nos tops. Furar o bloqueio - como Adriano Mineirinho está fazendo - e se tornar um beneficiado pelo seed é uma tarefa muito mais árdua que simplesmente acertar uma bola no fundo da quadra e fechar um jogo.

* reportagem publicada na edição de fevereiro da revista Fluir

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