Surfe deluxe

A próxima onda

14.4.10

A próxima onda*

Dizem que um homem nasce de novo quando descobre o que gosta. Foi assim em 1983, quando botei na água pela primeira vez uma prancha – biquilha, com o desenho clássico do Larry Bertlemann em vermelho, azul e branco. Foi assim anos mais tarde, no dia que descobri que narrar uma boa história era como sair de um tubo: o autor tinha que se colocar, encaixar num trilho coerente, usar a técnica para fluir num espaço limitado e chegar ao clímax antes da baforada. Muitas ondas se passaram até a estreia da coluna Surfe Deluxe, mas escrevê-la resgata o sonho adolescente de juntar dois dos meus maiores prazeres – o surf e o jornalismo – na mais conceituada e antiga revista especializada do Brasil. Nasci mais uma vez, amigos.

Surfe Deluxe surgiu a partir do blog homônimo (www.surfedeluxe.blogspot.com), que assino desde 2007 por diletantismo ou, sem dribles de texto, por pura vontade de escrever sobre o que eu mais gosto de fazer. Não quero enquadrar muito o perfil desta coluna, que por princípio é livre, mas a ideia é tratar das entrelinhas do esporte, resgatar histórias que passaram batidas pela correria do jornalismo factual dos sites de surf e analisar de forma justa, sem ufanismo ou complexo de vira-lata, as estrelas e tudo o que envolve o circo da ASP.

Na tenda armada para a primeira etapa da disputa pelo caneco mais cobiçado do mundo das pranchas, na Gold Coast, a evolução do esporte chamou a atenção. Não resta dúvida: uma nova onda está a caminho. A ASP parece estar cumprindo à risca as anunciadas mudanças no critério de julgamento. A maior valorização de manobras fortes com uso da borda e de manobras com alto grau de dificuldade em sequência levantou alguns surfistas e derrubou outros. Na nova ordem mundial, o americano Dane Reynolds e o sul-africano Jordy Smith estão em alta, com manobras modernas aliadas a linhas bem executadas. Já Neco Padaratz - que surfou bem na repescagem mas foi derrotado - sofreu ao perceber que suas potentes rasgadas de frontside, quando executadas sem a borda enterrada na água, não mais sensibilizam os juízes. Ainda dentro d´água, gesticulou para o palanque pedindo que soltassem mais as notas.

As surpresas nas papeletas da Austrália me lembraram uma frase de Joel Parkinson, vice por obra do acaso ano passado, publicada no meio de um desses releases oficiais da ASP de apresentação da temporada de 2010. “É um novo ano e, diante da rapidez com que o esporte está progredindo, você não pode se dar ao luxo de ficar pensando no que passou”.

O dono do surf mais bonito do mundo é um dos poucos que sabe usar a borda e as curvas sem precisar recorrer com freqüência a manobras mais extremas, mas, ao mesmo tempo, tem consciência de que o domínio de sua geração está com os dias contados. Inteligente, ele percebeu a incontrolável evolução pela qual o esporte passou nos últimos dois anos. Agora, além dos habituais e velhos bichos-papões Slater e Fanning, ele terá que conter a fúria da juventude, que chega repleta de novos truques e com o respaldo dos juízes da ASP.

A nova regra é um alento para a torcida brasileira. Afinal, temos Gabriel Medina, de apenas 16 anos, dono de um raro talento para realizar as valorizadas manobras difíceis em sequência – leia-se variações de aéreos. Já discutida na Fluir, a final do “King of Groms” da França no ano passado, quando o garoto venceu com 20 pontos em 20 possíveis, virou hit na internet. O texto do site oficial do evento, patrocinado pela Quiksilver, deixou claro o feito: “Poucos surfistas no mundo podem ostentar esse repertório de manobras aéreas, e menos surfistas ainda conseguem atingir esse nível, bateria após bateria, num ambiente competitivo.”

Antes disso, ele já tinha se tornado o mais novo surfista a vencer uma etapa WQS, ao ganhar a etapa da Praia Mole, em Florianópolis, ano passado. Em janeiro deste ano, Medina voltou a chocar o meio do surf, ao vencer com um 10 e um 9,9 a final do ISA Games da Nova Zelândia, botando os outros três adversários da final em combinação. Um amigo não segurou a onda e escreveu para uma lista de surfistas fissurados: “Acho que está surgindo o primeiro ET do surf brasileiro.” As respostas quase travaram a caixa de entrada: “joga o garoto em Pipeline” ou ainda “não pode puxar o bico em Teahupoo”.

Parece óbvio para todo mundo que ser um mestre em manobras aéreas não basta para levantar o troféu máximo da ASP. Então, vamos aprender com os erros do passado: o surgimento de um novo super-herói brasileiro em ondas pequenas não é motivo para comemoração, e sim para trabalho, muito trabalho. É hora de internar Medina pelo maior tempo possível nas melhores ondas do mundo, de moldar o seu surf também para as ondas tubulares mais difíceis, de diagnosticar seus pontos fracos e tratá-los, de formá-lo para ser um atleta completo, e não apenas mais um surfista entre tantos tops.

Para crescer, vale ainda um olhar atento nas linhas curvas e suaves do surf de Parkinson, na incrível capacidade de reinventar o esporte de Kelly Slater, na concentração avassaladora de Adriano Mineirinho, na combinação equilibrada de arcos clássicos e manobras modernas de Dane Reynolds e Jordy Smith, na determinação mortal de Mick Fanning e (por que não?) na enorme pilha de erros cometidos por quem ainda está ou já esteve no tour. Não custa nada puxar pela memória a fila de surfistas um dia considerados os melhores do mundo em ondas pequenas que, ao entrarem no tour, simplesmente morreram na praia.

* coluna Surfe Deluxe, publicada na edição de março da revista Fluir

Marcadores: , ,

Surfe Deluxe
Blog de notícias sobre as ondas e seus personagens, escrito com palavras salgadas pelo jornalista Tulio Brandão.
Participe!
Surfe Deluxe divide a onda. O blog é aberto à participação dos leitores, com textos e fotos. Quem tiver história ou imagem, mande para surfedeluxe@gmail.com
Créditos
Foto de fundo: Saquarema, por Fábio Minduim / Layout: Babi Veloso
Feeds RSS
» Clique aqui e receba o blog no seu agregador favorito
» O que é RSS?

Surfe Deluxe, por Tulio Brandão :: tulio@surfedeluxe.com.br :: Assinar o feed