Surfe deluxe

Ideias são como ondas

15.9.15

Caros leitores,

Passei cinco anos sem publicar palavras. Pelo menos por aqui.

Sigo feliz com a coluna Leitura de Onda, no Waves, e outros projetos editoriais, como o recém-lançado "Gabriel Medina" (Primeira Pessoa), lançado em julho deste ano, além, claro, do trabalho na Consultoria Doze+, nas áreas de meio ambiente e de cidades.

Mas decidi reativar o bom Surfe Deluxe para exercitar, aqui, escritos mais curtos e contundentes, brutos, a partir de ideias instantâneas que vêm e vão como uma onda que avança sobre a areia.

Escrever aqui é um jeito de eternizar essas doces - ou salgadas - banalidades.

Boas ondas, sempre.




O monstro que deforma horizontes

11.11.11


Quem é surfista, puxa o bico. Uns mais, outros menos. É o medo, que nos salva e condena. Dentro d´água, a explosão de adrenalina e cortisol que gera o estado de alerta normalmente só é controlada quando o surfista vive na chamada zona de conforto.

Cada um tem a sua, claro: Greg Long e Carlos Burle parecem estranhamente à vontade nos mares mais inóspitos do mundo. Água fria e turva, ondas de 30 pés, coral sangrento: a zona de conforto de quem surfa Mavericks é mais elástica.

Não só as estrelas têm essa vocação. Longe dos holofotes, todo mundo conhece pelo menos um louco que lida de maneira diferente com o medo.  Não falo dos valentes, daqueles que gastam a garganta para divulgar feitos em ondas duvidosas. Os mais corajosos costumam ser pacatos, humildes e donos dos sorrisos mais largos da praia.

Mas, às vezes, nem toda coragem do mundo é suficiente. O mar tem o princípio mais atraente e assustador da vida: a imprevisibilidade. Quando tudo parece sob controle, uma onda inesperada sobe ao fundo e deforma o horizonte. Ninguém escapa. Neste momento, a tal diferença entre homens e meninos desaparece.São todos vítimas, náufragos em suas pranchas.

O monstro de água que ninguém espera pode ser a tal freak wave, também chamada de rogue wave (numa tradução livre, seria algo como onda-aberração ou onda traiçoeira).

A literatura sempre foi farta em histórias de embarcações reviradas por ondas monstruosas. E, na cultura eternamente oral dos surfistas, não faltam relatos de ondas avassaladoras, que varrem baías inteiras sem deixar nada na superfície. No passado, a ciência não levava muito a sério as histórias de pescador, mas hoje o fenômeno vem sendo estudado por oceanógrafos de todo o mundo e é considerado uma possibilidade real, em qualquer tipo de mar.

O pesquisador Eloi Melo, agora na Universidade Federal do Rio Grande (Furg), é um desses apaixonados pelo mar que avançou na ciência para tentar decifrar os velhos mistérios antes mitificados. O cara entende do riscado: é um dos responsáveis pela implantação do atual sistema de previsão de ondas do site Waves e vive produzindo estudos.

Um deles varou a arrebentação das freak waves. Eloi se aprofundou no fenômeno a partir da observação do ondógrafo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) que era parte do Programa de Informação Costeira on-line.

O professor disseca detalhadamente o monstro da água. Primeiro, explica como chegar ao cálculo freak wave. “Quando se diz que um certo estado de mar tem ondas de dois metros, o que significa isso exatamente? Será que todas as ondas presentes no dia tem essa altura?  É obvio que não! Essa altura (conhecida tecnicamente como altura significativa) é uma altura “média” das ondas que é usada para caracterizar um estado de mar.  A altura significativa é definida como a média do terço superior das maiores ondas. Imagine um registro com 90 ondas, separe as 30 maiores e tire a media das suas alturas: esta é a altura "significativa". Portanto, é uma altura “média”, mas não de todas as ondas.”

Na sequência, mostra por que o fenômeno não é tão raro quanto parece: “A questão é: num mar com altura significativa de dois metros, qual a chance de encontrar uma onda de quatro metros? A resposta para essa questão passa por um estudo estatístico das alturas de onda, e é aí que entra a idéia de uma freak wave: a estatística mostra que as chances de se encontrar uma onda com altura maior que duas vezes a altura significativa do dia deveria ser muito remota.  Mas medições tem mostrado que no mundo real, aparecem ondas assim com uma frequencia maior do que a prevista pela teoria estatística. Eis aí a freak wave!”

Para o leitor apressado, a definição: freak waves são mais de duas vezes maiores que a altura significativa das ondas num determinado dia.

Da sala de aula para o mar, a coisa complica. Diversas vezes na vida, tive a sensação de ver uma onda completamente fora da curva média do swell daquele dia. Às vezes são vagalhões que arrastam quem estiver por perto para a zona de impacto e quebram pranchas. Mas não sei se foram genuínas freak waves. Vale não confundir com aquela onda da série que chamamos de “a maior do dia”. É uma onda mais de duas vezes maior que as maiores do dia.

Se os novos estudos apontam para uma freqüência maior que a esperada para as freak waves, faça as contas: você provavelmente entrou – ou um dia vai entrar – na estatística das vítimas do monstro traiçoeiro das águas. Basta ser surfista.


* Texto publicado na coluna Surfe Deluxe, na revista Fluir, em 2010.

Muito além do ouro

Tenho um amigo que, quando moleque, era o último a sair da água. Fissurado, surfava até a última gota de luz, o último raio de onda. Um dia, ele cresceu e virou deputado. Passou anos de carreira política longe do mar, com um medo visceral de que descobrissem seu segredo mais sujo: ele era um surfista. Pouco tempo atrás, com a carreira madura, decidiu voltar a pegar onda, mas sem fazer muita onda da novidade. Deu comichão.


Lembrei dele dias atrás, quando recebi uma mensagem avisando que o governo federal daria uma bolsa de R$ 15 mil mensais para atletas de alto rendimento, que estivessem ranqueados entre os dez melhores do mundo em seus esportes. A medida provisória seria enviada ao Congresso Nacional ainda este ano. Fabinho Barcellos, o remetente, escreveu: “Será que isso vale para o surfe?”

A seis anos do maior evento esportivo da história do Brasil, os Jogos de 2016, eu já desconfiava da resposta. Mas achei saudável duvidar. Corri atrás e descobri que o já implantado projeto Bolsa-atleta, em vigor desde 2004, vai ganhar o item “Atleta de Ouro”. O esboço da proposta inclui apenas atletas de modalidades olímpicas e paraolímpicas individuais que estejam ranqueados entre os dez primeiros e tenham chances reais de obter medalhas nos próximos Jogos Olímpicos ou Paraolímpicos, conforme critérios definidos pelas confederações.

Como o Barão de Coubertin jamais subiu numa prancha, Jadson André e Adriano de Souza, nossos heróis no front, não devem ver a cor das 15 mil pratas. O texto de apresentação do projeto do “atleta de ouro” até diz que, dependendo da disponibilidade financeira, poderão ser atendidos atletas de modalidades não oficiais. Como disponibilidade financeira é palavra proibida no Brasil e o programa de ajuda já existente ajuda apenas esportistas olímpicos de vários níveis, o mais provável mesmo é que os surfistas não vejam um tostão.

O pedagogo Pierre de Coubertin sonhava educar os jovens pelo desporto. Daí nasceu o maior evento esportivo de todos os tempos, os Jogos Olímpicos da era moderna. O surfe, pelo menos na sua expressão natural, não muita pretensão pedagógica, num sentido formal da expressão. Pelo contrário, volta e meia pinta como arma da molecada contestadora, que sonha demolir os castelos de disciplina erguidos nos esportes olímpicos.

Não sei se algum dia o surfe vai entrar na redoma olímpica - e nem sei se isso é de fato uma boa ideia, mas deixo a polêmica para outra coluna. Ainda assim, o prazer inventado por polinésios é um esporte, um esporte fascinante. Não faltam praticantes, admiradores, competições e adversários para legitimar uma bolsa de “atleta de ouro” para os ídolos brasileiros que lutam para estar entre os melhores.

Não culpo meu amigo deputado ou qualquer outro político pela eventual indiferença à velha prática polinésia. Já vi outros amigos executivos de empresas gigantes terem o mesmo comportamento. Um deles omitiu do chefe e de todos os colegas que passaria metade das férias dentro d’água, numa clássica surftrip com amigos de infância. “É uma precaução corporativa”, me revelou certa vez, com um sorriso envergonhado.

Mas o tempo certamente vai sepultar toda a vergonha de ser surfista. Era pior 20 anos atrás, bem pior. Basta ver o crowd de profissionais liberais bem-sucedidos que infesta as praias do Rio todo dia às 6h da matina. No meu prédio, um recanto familiar de classe média, há pelo menos quatro vizinhos surfistas. Todos eles pais. Desde o início da cultura do surfista até hoje, lá se vão mais de 50 anos. Surgem os primeiros avós que dividem o line-up com seus netos, como é comum na Austrália.

Outro dia, Gerry Lopez apareceu surfando uma bomba em Jaws num anúncio de página inteira da comportada editoria de Economia do jornalão Estado de São Paulo. Tudo isso para vender o sofisticado relógio suíço Omega. Na época da publicação, corri atrás do mito para ouvir o que ele pensa dessa história de surfe no mainstream.

Disse o mestre: "Os surfistas começaram a pegar onda porque era uma coisa diferente, que fazia com que fossem diferentes. Representava mais a liberdade que outros esportes. A identidade dos surfistas é única, o surfe sempre esteve fora do mainstream... dentro de sua própria pegada. Mas por ser um esporte atraente, ganhou popularidade até um ponto que se tornou parte do mainstream no mundo atual. Talvez alguns surfistas esperem que o esporte atinja o mesmo status de esportes como golfe e tênis, mas a maioria preferiria que fosse menos popular."

Vou mais longe: talvez, no futuro, haja até uma bancada de deputados surfistas no Congresso Nacional. Talvez haja bolsas-surfista aprovadas em lei. E talvez, por isso, a experiência do esporte não seja mais a mesma. Na verdade, não há caminho de volta. Será, como diz o mestre Lopez, apenas uma "experiência diferente".

* texto publicado na coluna Surfe Deluxe, na revista Fluir, em 2010. 

Esperar, acreditar e insistir*

16.4.11

Surfe Deluxe posta o texto da jornalista Natália Leão, sobre as experiências e lições aprendidas com o surf. Dentro d´água há um ano, ela encontrou várias equivalências entre o esporte dos Reis e a vida. Vale a pena ler:

Quando os olhos finalmente se abrem é possível entender as lições escondidas nas sutilezas de cada instante. O surfe tem me presenteado com alguns desses ensinamentos. Três lições têm sido especialmente importantes nesse momento específico da minha trajetória. No surfe, como na vida, é preciso esperar, acreditar e insistir.

No momento em que entra na água você já sabe que passará grande parte do tempo esperando. Esperando pela onda certa, por exemplo. Mas entenda, a onda certa nem sempre é a onda perfeita. Às vezes é aquela onda pequena, quase uma marola, que você pensa em desprezar, mas no fim proporciona tanto prazer quanto qualquer outra. Vez ou outra, a onda certa é aquela que amedronta, que devora, que derruba. O fato é que todas ensinam algo.

Quem surfa também espera dias, semanas, até meses por uma boa ondulação, afinal, tem dias que a maré não está a nosso favor. Na vida não é diferente. Passamos dias esperando uma proposta de emprego, meses esperando aquele dinheiro entrar, e anos esperando que um grande amor apareça.

Tanto na vida quanto no surfe, não podemos prever quando a maré finalmente vai estar a nosso favor, só podemos esperar que isso aconteça, sem desprezar as marolas e sem temer as ondas vorazes.

Se você quer surfar é imprescindível acreditar. Acreditar que vale a pena remar por horas, mesmo em más condições. Acreditar que vai conseguir atravessar a arrebentação, acreditar que as ondas vão compensar o esforço. Acreditar que sim: se eu me esforçar dá pra pegar aquela onda, sim se eu tentar mais uma vez vou dropar, sim, se eu não desistir vou alcançar.

No momento em que se está no mar, sentado, se equilibrando sobre a prancha e lá longe é possível ver uma movimentação, a aguá adquirindo velocidade, no horizonte a ondulação crescendo em sua direção, só há duas opções: acreditar e remar com toda vontade ou desistir e perder a onda. Não existe meio termo. Na vida não é diferente.

Existem pessoas que ficam sentadas, olhando a vida passar e existem aquelas que se jogam, mesmo sabendo que podem se afogar ou que podem não alcançar a onda. Mas é preciso se lembrar: “É só água”, como diz uma grande amiga minha. O ar está logo alí e mesmo o pior dos caldos te ensina a sobreviver.

A terceira lição que aprendi com o surfe foi insistir. No início são horas de esforço físico por pouca recompensa. São horas, dias, meses, até anos de sacrifícios, dores musculares, abnegações, viagens na madrugada. São minutos intermináveis remando, tentando passar a arrebentação para segundos em pé em uma onda. Há dias em que você cai, cai, cai, cai, cai, e pensa em desistir. Mas também há aqueles em que você evolui, afinal, é das adversidades que surgem os aprendizados. O importante é que se você tiver a determinação necessária, a natureza e o esporte te recompensarão com os melhores segundos da sua vida. Aquele momento em que você, a prancha, o mar e o ar se tornam um.

E se na vida você achar que não vale a pena insistir, tenha certeza que você vai se afogar. Na vida não dá para colocar a prancha embaixo do braço e desistir, não tem colete salva-vidas, nem bote de resgate. Correndo o risco de parecer piegas, digo que a música está certa: “A vida vem em ondas”, às vezes ela te derruba, às vezes te conduz. Cabe a você escolher se vai surfar pela vida ou apenas boiar enquanto ela passa.

Clique para visitar o blog da Natália e ler outros textos dela.

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Toy Surf Story

O surfista mitológico

27.3.11

Num dia qualquer de 1820, na Ilha de Milo, na Grécia, um camponês deu de cara com uma velha estátua quebrada em dois pedaços e sem braços. Quando voltou à vila com aquele monte de mármore esculpido, ninguém deu muita bola, a não ser um marinheiro francês mais observador, Olivier Voutier. Ele tanto insistiu que convenceu seu superior a comprar a sucata do nativo por meia dúzia de cabras.

Quando desembarcaram em Paris, os restos da estátua foram parar no Louvre. No velho museu, ela foi remontada, estudada e datada. A escultura abandonada era Vênus de Milo, de 130 A.C., primorosa obra que representa a deusa grega Afrodite, da beleza e do amor.

Voutier havia identificado nos restos de uma estátua partida um modelo de beleza construído pelos gregos que vale até hoje. O marinheiro julgou a estátua valiosa porque o padrão estético daquela deusa já estava incorporado em seu DNA e no de toda a cultura ocidental.

Pode parecer loucura de artista, mas o surfe – assim como a escultura da deusa Afrodite – é uma expressão estética. E, como tal, depende do nosso julgamento. Noves fora todas as tentativas válidas de dar critérios objetivos ao esporte, a beleza às vezes vence.

Tom Curren, que desenha curvas tão sedutoras quanto as de Oscar Niemeyer, foi tricampeão mundial. Gostem ou não, Mark Richards surfou com a leveza de uma gaivota para vencer quatro vezes. Já Fábio Gouveia trouxe ao surfe um estilo sereno com arcos desenhados sem pressa. Encantou, mas não ganhou. Assim como Joel Parkinson, hoje o maior representante das linhas belas, que por um desses acasos do cruel mundo competitivo ainda não chegou lá.

Outras vezes, os novos padrões do esporte foram definidos com vitórias. Com dez títulos, Kelly Slater será um modelo do surfe perfeito enquanto estiver vivo. Mick Fanning ganhou status de paradigma com o segundo triunfo. Taj Burrow, pelo modo como passeia pela onda, entrou para o grupo de modelos a serem seguidos. A grita mais comum é que esses caras são “bem julgados”, são os “queridinhos da ASP”. Não é isso. Eles viraram o padrão do que é bom.

Tem quem diga que, em uma ou duas situações, a entidade escolheu seu modelo antes mesmo de os surfistas entrarem na água. Um dos eleitos da ASP teria sido Sunny Garcia, em 2000, numa reverência aos havaianos. Mas mesmo ali havia uma beleza: apesar do estilo pouco polido, o cara atraía os juízes pela violência com que atacava lips de todos os tipos de onda.

Diante da expressão estética, critérios de julgamento se tornam apenas um norte frágil, como o equilíbrio de um acrobata sobre uma corda bamba. Juízes de surfe são como o marinheiro francês, que em pleno Mar Egeu se encantou pela Vênus de Milo. São como todos nós.

O tempo passou, mas a poesia do surfe parece não ter perdido força nem mesmo no ano de redenção dos donos de “manobras progressivas e inovadoras”, como diz o critério da ASP. Um garoto americano que nunca ganhou nada na elite, tímido fora d´água, desponta como o novo padrão de surfista do futuro, como o modelo mais bem acabado de surfe elegante, com arcos sem quebras e manobras extremamente modernas, sem ter abandonado o velho carving.

Dane Reynolds é o eleito. Talvez seja um dos surfistas sem vitória mais bem avaliados da história da ASP. Tornou-se um modelo por executar, dentro d´água, tudo aquilo o que a entidade deseja na nova ordem do esporte. Não é balela. Pegue o novo critério de julgamento, vasculhe-o, revire-o do avesso: não adianta, você vai enxergar Dane. Se fosse eu a escolher um novo surfista-padrão, um dono para as notas dez, não seria diferente.

Voutier admirou prontamente Vênus porque a beleza daquela escultura encontrada na Ilha de Milo lhe pareceu familiar. Ele estava certo. Lá atrás, aquela deusa da mitologia grega ajudou a definir padrões estéticos universais. Assim é no surfe, cujos diversos padrões criados na história da ASP também influenciaram indistintamente várias gerações. Dane é admirado porque seu surfe é o resultado sutil e bem-sucedido de uma soma de técnicas e estilos que prevaleceram ao longo da história do esporte, combinada a um novo talento.

Fosse o surfe exposto no Louvre, Dane seria obra valiosa sem precisar entrar na água. Mas, por mais consistente que seja a obra, no mundo real, há um abismo chamado competição entre o surfista e o sucesso. Lá, muitas vezes prevalece o imprevisível humor da onda e, claro, um adversário competente. Até porque, quando menos se espera, um anônimo tão ignorado quanto o desconhecido autor da definitiva escultura grega de Afrodite esculpe uma obra de arte absolutamente original na onda e encanta o mundo.

* Publicada na revista Fluir em 2010.

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O paraíso é longe

13.11.10

O paraíso é longe
Surftrips são pródigas em nos revelar surpresas além das ondas. Quatro anos atrás, fiz uma viagem programada para ser apenas a realização inocente de um sonho de moleque, dos tempos que eu dobrava meus cadernos para simular esquerdas perfeitas e tubulares. A aventura se transformou numa experiência tão intensa que eu até hoje não tinha tentado transformá-la numa história impressa em papel.

Tudo começou quando o amigo Rodrigo Schmidt fez um convite para uma viagem diferente. O destino não seria Bali, Desert Point ou outro pico prestes a colapsar com o crowd. Iríamos para o fim do mundo, na instável Ilha de Asu, em Sumatra. Iríamos para o epicentro de um dos maiores terremotos da história, ocorrido em 2005. Embarquei.

Rio – São Paulo – Santiago – Auckland – Sydney – Denpassar – Kuala Lumpur – Medan – Nias (Gunung Sitoli) – Nias (Sirombo) – Asu. É provavelmente a viagem mais longa que um surfista pode fazer do Brasil para a Indonésia: 10 escalas em quatro dias entre vários jatos, um bimotor esfumaçado, um carro numa estrada destruída pelo terremoto e uma traineira de pescador em mar aberto.

No caminho, passei pelo perrengue de pranchas extraviadas, retidas pela imigração e, por fim, danificadas. Dormi, como de regra, em aeroporto. Driblei tempestades monçônicas, vilas fantasmas devastadas por tsunamis, tentativas de extorsão e toda a sorte de armadilhas que um amador pode enfrentar a caminho do paraíso.

Desembarquei em Asu. Ao pisar na ilha, percebi que o planeta é um corpo vivo. A bancada de coral, antes submersa, durante o terremoto de 8.7 graus tinha se elevado três metros. Estava definitivamente seca, condenada a virar areia em pouco tempo.

Mama Silvis, líder na ilha, contou-me como foi a noite mais longa da vida dos locais. “Eu rolava, não dava nem para engatinhar. Sentia o chão como uma gelatina. Todos os moradores da ilha entraram no meu barco. Fomos para alto mar, mas só veio uma maré, porque estávamos no epicentro do terremoto.” Mama intuiu o que, com aparelhos, os pesquisadores do Instituto de Tecnologia da Califórnia comprovaram. Fui atrás do estudo e descobri que a ameaça persiste: “Outra seção da falha tectônica provavelmente vai causar mais um grande terremoto num futuro não muito distante.”

Apesar do histórico, tudo na ilha parecia plácido, assustadoramente calmo: as casas de madeira e palha, os coqueiros que ocupam todo o território, as proporções diminutas de Asu – é possível dar a volta pelas suas margens de coral em menos de uma hora.

Fiquei no Asu Surf Bungalow. Nada de luxo. Eletricidade, só durante algumas horas. O melhor banheiro era a canaleta do coral – agora, o sanitário oficial está reformado. A comida é feita com cuidado pela Patrícia Cabrini, mulher de Alexandre Macabu, gerente da casa: arroz, frutas e água de coco. Saudável. Como diz um folder feito pelo David, dono do negócio, é uma “real surftrip”. Com uma importante cereja em cima do bolo: as casas ficam em frente a um pico repleto de ondas perfeitas, sem crowd.

Em Asu, não faltam o que os guias de surfe chamam de “hazards”. Num dia de maral, sem nada para fazer, passei o olho no capítulo de Sumatra do livro Surfing Indonesia, que diz assim: “Ouvimos uma história de um desafortunado surfista australiano que contraiu uma forma virulenta de malária cerebral enquanto esperava ondas em Asu. Ele foi levado num barco lento até Nias e, quando viajava de ônibus até o aeroporto, morreu.”

Antes de eu viajar, a médica Káris Rodrigues, da UFRJ, havia alertado: aquela região de Sumatra é uma das mais suscetíveis do mundo à malária cerebral. Mas nada que o repelente Exposis e mangas compridas não pudessem evitar.

O calor é uma decorrência óbvia. Numa ilha encravada na Linha do Equador, temos que usar calça, camisa comprida e, nas partes descobertas, besuntar a pele com um repelente tão forte que esquenta. Isso sem eletricidade para fazer rodar o ventilador.

Às vezes, nada é capaz de prevenir os riscos. Em uma das noites, no breu absoluto imposto pela natureza, senti um bicho gelado na minha barriga. Sei saber o que era, dei um tapa nele e fechei o mosquiteiro. No dia seguinte, mataram um escorpião no bangalô. Noutro dia, estava com o amigo Lucas Rachewsky na bancada quando surgiu um lagarto gigante. Corria a lenda que a ilha era habitada por um temido dragão-de-komodo.

Quando voltei, o biólogo Gustavo Wright me contou que o monstro era, na verdade, um Varano Aquático, que pode chegar a 2,5 metros, pesar 80 quilos e ser tão mortal quanto seu parente de Komodo. Mas devia estar de barriga cheia.

A bruxa resolveu pegar onda no dia mais clássico – terral, de seis a oito pés. De manhã, um australiano foi mordido por uma barracuda. Várias pranchas quebraram, vários surfistas saíram da água com enormes cortes de coral. À tarde, os cerca de 20 surfistas que se hospedavam na ilha ficaram em suspenso: a bancada conhecida como nuclear zone escalpelou impiedosamente o neozelandês Matthew Murphy. O cara saiu da água em estado de choque, com pedaços de coral vivo presos à caixa craniana, sem muitas perspectivas de sobreviver no fim de mundo. De lá até a capital mais próxima, seriam três dias de viagem. E como a comunicação é precária – feita apenas por um telefone de satélite - não adiantou tentar um helicóptero. Helicópteros não costumam receber chamados para ir ao fim do mundo.

Mas Deus costuma. Primeiro, enviou Macabu, Pat e David, que fizeram um socorro inicial. Depois, assumiu as mãos do médico Luiz Renato Brand, curitibano que por um desses acasos místicos passara o dia embarcado numa boat trip em frente à ilha. Matthew foi operado numa mesa de jantar, sob a luz das lanternas dos surfistas, a sangue frio. Em vez de anestesia, apenas uma cachaça para amenizar a dor.

Antes que alguém pense num inferno, eu estava no paraíso. Num paraíso real, repleto de ondas perfeitas, isolado do progresso e do crowd. Num paraíso vivo, sem os filtros do confortável mundo urbano. Passei 15 dias na ilha, metade dos quais dentro d´água, em cilindros absolutamente perfeitos, moldados por um leve terral. Estive em cenários de tirar o fôlego, sem interferência do homem, que deixariam qualquer Aruba no chinelo. Conheci nativos puros, desprovidos da maldade do mundo contemporâneo.

Seria redundante perder mais tempo falando do lado A da ilha: em todos os sentidos, Asu foi uma das mais fantásticas experiências da minha vida. Mudou meu olhar sobre o mundo. Antes do fim: o neozelandês sobreviveu. E voltou para casa a tempo de ver o seu primeiro filho nascer. Veio ao mundo Luiz Murphy, batizado em homenagem ao médico brasileiro. Matthew agora é pai como eu, mas outro dia confessou, num e-mail, a vontade que também já tive: “Quero voltar a Asu.”

Extraído da Coluna Surfe Deluxe, da edição de maio de 2010 da revista Fluir.

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Surfe Deluxe
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Foto de fundo: Saquarema, por Fábio Minduim / Layout: Babi Veloso
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