Surfe deluxe

Soco no ar

25.4.10

Soco no ar*

O mar estava pequeno em Snapper Rocks, na Austrália. Dentro d´água, Neco Padaratz, um de nossos surfistas com melhor desempenho na história da ASP, com duas vitórias em eventos da elite, parecia competir não apenas contra Damien Hobgood, mas também contra o tempo. Quem olhasse mais atentamente, veria também, ali, boiando no line-up, o fantasma das sucessivas contusões que sempre atormentaram o brasileiro.

Mas Neco fez o que dele se espera: vestiu a surrada armadura de guerreiro e lutou com a faca entre os dentes e sangue nos olhos para atropelar seus oponentes. Achou uma direita mais certinha na bancada, posicionou-se e tirou um tubo honesto. Na saída, como se quisesse destruir os seus fantasmas, levantou os dois braços. Comemorou, vibrou com um canudo considerado usual entre profissionais do World Tour em Snapper. Ainda fez o resto da onda de modo convincente, aplicando rasgadas. Ganhou dos juízes uma nota dura: 6,9.

A comemoração pode ter pesado na nota? A ASP nasceu em berço anglo-saxão, dentro de uma cultura de gestos contidos. A euforia, a vibração e – por que não? – a alegria inocente são atributos do povo latino. Sim, nós somos mais barulhentos, mais emocionais. Reverenciamos a vida. Sérgio Buarque de Hollanda definiu o brasileiro, certa vez, como um homem cordial e aventureiro, em busca de novas sensações. No mundo dos australianos e americanos, o modelo bem-sucedido de sujeito é o do trabalhador, movido pelo desejo de uma vida segura e estável. Euforia, para o mundo anglo-saxão, é coisa de índio.

É claro que o surf, pelas sensações que desperta, admite – e em alguns casos até pede - expressões de emoção incontida, não importa a origem do surfista. Mas a escala de comemoração ainda é e será, enquanto o Brasil não estiver no topo, definida pela cultura dos gringos. Para a ASP, comemorar um tubaço nota dez em Teahupoo – lembram de um clássico do Fábio Gouveia, em que ele foi fotografado ao sair com as duas mãos para o alto? – é permitido. Mais que isso, é recomendado. Agora, vibrar com ondas medianas, nem pensar. Não importa o seu estado de espírito, vale a cultura do gesto controlado, vale a regra deles.

Há duas edições, publiquei uma reportagem na Fluir que discutia a questão do preconceito contra surfistas brasileiros no tour. Na lista de entrevistados para montar o texto, estava Ícaro Cavalheiro, um dos mais respeitados juízes do quadro do World Tour. No meio da conversa, o conterrâneo resvalou na euforia brasileira: “Não adianta. Brasileiros têm que parar de comemorar ondas consideradas boas, que estão longe da nota máxima. Talvez tenhamos esse hábito por não termos tantas ondas de qualidade. Aí, quando o brasileiro vai a Teahupoo e tira um tubo lindo que valeria um 7,5, vibra. O problema é que logo atrás, na maior da série, vem um Joel Parkinson da vida, faz um 9,5 e sai da onda sem levantar nenhum braço para o alto.”

O argumento de Cavalheiro é absolutamente pertinente do ponto de vista da competição. O atleta realmente fica enfraquecido diante dos juízes quando comemora uma onda considerada mediana nas papeletas. Sobretudo quando seu oponente é uma máquina fria e calculista de fazer notas 10 que nasceu nos EUA ou na Austrália.

Ainda assim, surfistas de todas as cores e credos começam, lentamente, a reproduzir a vibração típica do brasileiro. Volta e meia soca, o próprio Parkinson tem socado o ar para levantar a nota. O aussie não deve saber, mas o gesto foi criado por um cara chamado Pelé. Num jogo do Santos contra o Juventus (time paulista), em 1959, quando a torcida gritava a plenos pulmões ofensas racistas, ele meteu um gol de placa. Lençol em três, outro no goleiro.

Na comemoração, descarregou a sua ira com socos no ar. Quem o chamava de “macaco” emudeceu. O Brasil, que já tinha vencido uma Copa do Mundo, manteve um domínio no futebol comparável ao de australianos e americanos no surf. Assim, ditamos o padrão de comemoração entre boleiros. Soco no ar virou regra, assim como títulos mundiais da Seleção.

Dentro d´água, ainda não tomamos o bastão dos gringos. Neco não pode ser comparado nem a um Zico. E mesmo com todo o talento e determinação, Adriano de Souza passa longe da imortalidade do Rei. Mas os dois – e todos os brasileiros – devem continuar comemorando cada pequena conquista da carreira com socos no ar, ainda que sejam mal interpretados. Porque o importante não só é ganhar, e sim ganhar sem deixar de ser brasileiro. Quando isso acontecer, a comemoração vai ser barulhenta, eufórica. Os gringos podem esperar, que um dia a hora deles vai chegar.

* coluna Surfe Deluxe, edição de abril de 2010 da revista Fluir

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