Surfe deluxe

O monstro que deforma horizontes

11.11.11


Quem é surfista, puxa o bico. Uns mais, outros menos. É o medo, que nos salva e condena. Dentro d´água, a explosão de adrenalina e cortisol que gera o estado de alerta normalmente só é controlada quando o surfista vive na chamada zona de conforto.

Cada um tem a sua, claro: Greg Long e Carlos Burle parecem estranhamente à vontade nos mares mais inóspitos do mundo. Água fria e turva, ondas de 30 pés, coral sangrento: a zona de conforto de quem surfa Mavericks é mais elástica.

Não só as estrelas têm essa vocação. Longe dos holofotes, todo mundo conhece pelo menos um louco que lida de maneira diferente com o medo.  Não falo dos valentes, daqueles que gastam a garganta para divulgar feitos em ondas duvidosas. Os mais corajosos costumam ser pacatos, humildes e donos dos sorrisos mais largos da praia.

Mas, às vezes, nem toda coragem do mundo é suficiente. O mar tem o princípio mais atraente e assustador da vida: a imprevisibilidade. Quando tudo parece sob controle, uma onda inesperada sobe ao fundo e deforma o horizonte. Ninguém escapa. Neste momento, a tal diferença entre homens e meninos desaparece.São todos vítimas, náufragos em suas pranchas.

O monstro de água que ninguém espera pode ser a tal freak wave, também chamada de rogue wave (numa tradução livre, seria algo como onda-aberração ou onda traiçoeira).

A literatura sempre foi farta em histórias de embarcações reviradas por ondas monstruosas. E, na cultura eternamente oral dos surfistas, não faltam relatos de ondas avassaladoras, que varrem baías inteiras sem deixar nada na superfície. No passado, a ciência não levava muito a sério as histórias de pescador, mas hoje o fenômeno vem sendo estudado por oceanógrafos de todo o mundo e é considerado uma possibilidade real, em qualquer tipo de mar.

O pesquisador Eloi Melo, agora na Universidade Federal do Rio Grande (Furg), é um desses apaixonados pelo mar que avançou na ciência para tentar decifrar os velhos mistérios antes mitificados. O cara entende do riscado: é um dos responsáveis pela implantação do atual sistema de previsão de ondas do site Waves e vive produzindo estudos.

Um deles varou a arrebentação das freak waves. Eloi se aprofundou no fenômeno a partir da observação do ondógrafo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) que era parte do Programa de Informação Costeira on-line.

O professor disseca detalhadamente o monstro da água. Primeiro, explica como chegar ao cálculo freak wave. “Quando se diz que um certo estado de mar tem ondas de dois metros, o que significa isso exatamente? Será que todas as ondas presentes no dia tem essa altura?  É obvio que não! Essa altura (conhecida tecnicamente como altura significativa) é uma altura “média” das ondas que é usada para caracterizar um estado de mar.  A altura significativa é definida como a média do terço superior das maiores ondas. Imagine um registro com 90 ondas, separe as 30 maiores e tire a media das suas alturas: esta é a altura "significativa". Portanto, é uma altura “média”, mas não de todas as ondas.”

Na sequência, mostra por que o fenômeno não é tão raro quanto parece: “A questão é: num mar com altura significativa de dois metros, qual a chance de encontrar uma onda de quatro metros? A resposta para essa questão passa por um estudo estatístico das alturas de onda, e é aí que entra a idéia de uma freak wave: a estatística mostra que as chances de se encontrar uma onda com altura maior que duas vezes a altura significativa do dia deveria ser muito remota.  Mas medições tem mostrado que no mundo real, aparecem ondas assim com uma frequencia maior do que a prevista pela teoria estatística. Eis aí a freak wave!”

Para o leitor apressado, a definição: freak waves são mais de duas vezes maiores que a altura significativa das ondas num determinado dia.

Da sala de aula para o mar, a coisa complica. Diversas vezes na vida, tive a sensação de ver uma onda completamente fora da curva média do swell daquele dia. Às vezes são vagalhões que arrastam quem estiver por perto para a zona de impacto e quebram pranchas. Mas não sei se foram genuínas freak waves. Vale não confundir com aquela onda da série que chamamos de “a maior do dia”. É uma onda mais de duas vezes maior que as maiores do dia.

Se os novos estudos apontam para uma freqüência maior que a esperada para as freak waves, faça as contas: você provavelmente entrou – ou um dia vai entrar – na estatística das vítimas do monstro traiçoeiro das águas. Basta ser surfista.


* Texto publicado na coluna Surfe Deluxe, na revista Fluir, em 2010.

Muito além do ouro

Tenho um amigo que, quando moleque, era o último a sair da água. Fissurado, surfava até a última gota de luz, o último raio de onda. Um dia, ele cresceu e virou deputado. Passou anos de carreira política longe do mar, com um medo visceral de que descobrissem seu segredo mais sujo: ele era um surfista. Pouco tempo atrás, com a carreira madura, decidiu voltar a pegar onda, mas sem fazer muita onda da novidade. Deu comichão.


Lembrei dele dias atrás, quando recebi uma mensagem avisando que o governo federal daria uma bolsa de R$ 15 mil mensais para atletas de alto rendimento, que estivessem ranqueados entre os dez melhores do mundo em seus esportes. A medida provisória seria enviada ao Congresso Nacional ainda este ano. Fabinho Barcellos, o remetente, escreveu: “Será que isso vale para o surfe?”

A seis anos do maior evento esportivo da história do Brasil, os Jogos de 2016, eu já desconfiava da resposta. Mas achei saudável duvidar. Corri atrás e descobri que o já implantado projeto Bolsa-atleta, em vigor desde 2004, vai ganhar o item “Atleta de Ouro”. O esboço da proposta inclui apenas atletas de modalidades olímpicas e paraolímpicas individuais que estejam ranqueados entre os dez primeiros e tenham chances reais de obter medalhas nos próximos Jogos Olímpicos ou Paraolímpicos, conforme critérios definidos pelas confederações.

Como o Barão de Coubertin jamais subiu numa prancha, Jadson André e Adriano de Souza, nossos heróis no front, não devem ver a cor das 15 mil pratas. O texto de apresentação do projeto do “atleta de ouro” até diz que, dependendo da disponibilidade financeira, poderão ser atendidos atletas de modalidades não oficiais. Como disponibilidade financeira é palavra proibida no Brasil e o programa de ajuda já existente ajuda apenas esportistas olímpicos de vários níveis, o mais provável mesmo é que os surfistas não vejam um tostão.

O pedagogo Pierre de Coubertin sonhava educar os jovens pelo desporto. Daí nasceu o maior evento esportivo de todos os tempos, os Jogos Olímpicos da era moderna. O surfe, pelo menos na sua expressão natural, não muita pretensão pedagógica, num sentido formal da expressão. Pelo contrário, volta e meia pinta como arma da molecada contestadora, que sonha demolir os castelos de disciplina erguidos nos esportes olímpicos.

Não sei se algum dia o surfe vai entrar na redoma olímpica - e nem sei se isso é de fato uma boa ideia, mas deixo a polêmica para outra coluna. Ainda assim, o prazer inventado por polinésios é um esporte, um esporte fascinante. Não faltam praticantes, admiradores, competições e adversários para legitimar uma bolsa de “atleta de ouro” para os ídolos brasileiros que lutam para estar entre os melhores.

Não culpo meu amigo deputado ou qualquer outro político pela eventual indiferença à velha prática polinésia. Já vi outros amigos executivos de empresas gigantes terem o mesmo comportamento. Um deles omitiu do chefe e de todos os colegas que passaria metade das férias dentro d’água, numa clássica surftrip com amigos de infância. “É uma precaução corporativa”, me revelou certa vez, com um sorriso envergonhado.

Mas o tempo certamente vai sepultar toda a vergonha de ser surfista. Era pior 20 anos atrás, bem pior. Basta ver o crowd de profissionais liberais bem-sucedidos que infesta as praias do Rio todo dia às 6h da matina. No meu prédio, um recanto familiar de classe média, há pelo menos quatro vizinhos surfistas. Todos eles pais. Desde o início da cultura do surfista até hoje, lá se vão mais de 50 anos. Surgem os primeiros avós que dividem o line-up com seus netos, como é comum na Austrália.

Outro dia, Gerry Lopez apareceu surfando uma bomba em Jaws num anúncio de página inteira da comportada editoria de Economia do jornalão Estado de São Paulo. Tudo isso para vender o sofisticado relógio suíço Omega. Na época da publicação, corri atrás do mito para ouvir o que ele pensa dessa história de surfe no mainstream.

Disse o mestre: "Os surfistas começaram a pegar onda porque era uma coisa diferente, que fazia com que fossem diferentes. Representava mais a liberdade que outros esportes. A identidade dos surfistas é única, o surfe sempre esteve fora do mainstream... dentro de sua própria pegada. Mas por ser um esporte atraente, ganhou popularidade até um ponto que se tornou parte do mainstream no mundo atual. Talvez alguns surfistas esperem que o esporte atinja o mesmo status de esportes como golfe e tênis, mas a maioria preferiria que fosse menos popular."

Vou mais longe: talvez, no futuro, haja até uma bancada de deputados surfistas no Congresso Nacional. Talvez haja bolsas-surfista aprovadas em lei. E talvez, por isso, a experiência do esporte não seja mais a mesma. Na verdade, não há caminho de volta. Será, como diz o mestre Lopez, apenas uma "experiência diferente".

* texto publicado na coluna Surfe Deluxe, na revista Fluir, em 2010. 

Surfe Deluxe
Blog de notícias sobre as ondas e seus personagens, escrito com palavras salgadas pelo jornalista Tulio Brandão.
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