Surfe deluxe

O paraíso é longe

13.11.10

O paraíso é longe
Surftrips são pródigas em nos revelar surpresas além das ondas. Quatro anos atrás, fiz uma viagem programada para ser apenas a realização inocente de um sonho de moleque, dos tempos que eu dobrava meus cadernos para simular esquerdas perfeitas e tubulares. A aventura se transformou numa experiência tão intensa que eu até hoje não tinha tentado transformá-la numa história impressa em papel.

Tudo começou quando o amigo Rodrigo Schmidt fez um convite para uma viagem diferente. O destino não seria Bali, Desert Point ou outro pico prestes a colapsar com o crowd. Iríamos para o fim do mundo, na instável Ilha de Asu, em Sumatra. Iríamos para o epicentro de um dos maiores terremotos da história, ocorrido em 2005. Embarquei.

Rio – São Paulo – Santiago – Auckland – Sydney – Denpassar – Kuala Lumpur – Medan – Nias (Gunung Sitoli) – Nias (Sirombo) – Asu. É provavelmente a viagem mais longa que um surfista pode fazer do Brasil para a Indonésia: 10 escalas em quatro dias entre vários jatos, um bimotor esfumaçado, um carro numa estrada destruída pelo terremoto e uma traineira de pescador em mar aberto.

No caminho, passei pelo perrengue de pranchas extraviadas, retidas pela imigração e, por fim, danificadas. Dormi, como de regra, em aeroporto. Driblei tempestades monçônicas, vilas fantasmas devastadas por tsunamis, tentativas de extorsão e toda a sorte de armadilhas que um amador pode enfrentar a caminho do paraíso.

Desembarquei em Asu. Ao pisar na ilha, percebi que o planeta é um corpo vivo. A bancada de coral, antes submersa, durante o terremoto de 8.7 graus tinha se elevado três metros. Estava definitivamente seca, condenada a virar areia em pouco tempo.

Mama Silvis, líder na ilha, contou-me como foi a noite mais longa da vida dos locais. “Eu rolava, não dava nem para engatinhar. Sentia o chão como uma gelatina. Todos os moradores da ilha entraram no meu barco. Fomos para alto mar, mas só veio uma maré, porque estávamos no epicentro do terremoto.” Mama intuiu o que, com aparelhos, os pesquisadores do Instituto de Tecnologia da Califórnia comprovaram. Fui atrás do estudo e descobri que a ameaça persiste: “Outra seção da falha tectônica provavelmente vai causar mais um grande terremoto num futuro não muito distante.”

Apesar do histórico, tudo na ilha parecia plácido, assustadoramente calmo: as casas de madeira e palha, os coqueiros que ocupam todo o território, as proporções diminutas de Asu – é possível dar a volta pelas suas margens de coral em menos de uma hora.

Fiquei no Asu Surf Bungalow. Nada de luxo. Eletricidade, só durante algumas horas. O melhor banheiro era a canaleta do coral – agora, o sanitário oficial está reformado. A comida é feita com cuidado pela Patrícia Cabrini, mulher de Alexandre Macabu, gerente da casa: arroz, frutas e água de coco. Saudável. Como diz um folder feito pelo David, dono do negócio, é uma “real surftrip”. Com uma importante cereja em cima do bolo: as casas ficam em frente a um pico repleto de ondas perfeitas, sem crowd.

Em Asu, não faltam o que os guias de surfe chamam de “hazards”. Num dia de maral, sem nada para fazer, passei o olho no capítulo de Sumatra do livro Surfing Indonesia, que diz assim: “Ouvimos uma história de um desafortunado surfista australiano que contraiu uma forma virulenta de malária cerebral enquanto esperava ondas em Asu. Ele foi levado num barco lento até Nias e, quando viajava de ônibus até o aeroporto, morreu.”

Antes de eu viajar, a médica Káris Rodrigues, da UFRJ, havia alertado: aquela região de Sumatra é uma das mais suscetíveis do mundo à malária cerebral. Mas nada que o repelente Exposis e mangas compridas não pudessem evitar.

O calor é uma decorrência óbvia. Numa ilha encravada na Linha do Equador, temos que usar calça, camisa comprida e, nas partes descobertas, besuntar a pele com um repelente tão forte que esquenta. Isso sem eletricidade para fazer rodar o ventilador.

Às vezes, nada é capaz de prevenir os riscos. Em uma das noites, no breu absoluto imposto pela natureza, senti um bicho gelado na minha barriga. Sei saber o que era, dei um tapa nele e fechei o mosquiteiro. No dia seguinte, mataram um escorpião no bangalô. Noutro dia, estava com o amigo Lucas Rachewsky na bancada quando surgiu um lagarto gigante. Corria a lenda que a ilha era habitada por um temido dragão-de-komodo.

Quando voltei, o biólogo Gustavo Wright me contou que o monstro era, na verdade, um Varano Aquático, que pode chegar a 2,5 metros, pesar 80 quilos e ser tão mortal quanto seu parente de Komodo. Mas devia estar de barriga cheia.

A bruxa resolveu pegar onda no dia mais clássico – terral, de seis a oito pés. De manhã, um australiano foi mordido por uma barracuda. Várias pranchas quebraram, vários surfistas saíram da água com enormes cortes de coral. À tarde, os cerca de 20 surfistas que se hospedavam na ilha ficaram em suspenso: a bancada conhecida como nuclear zone escalpelou impiedosamente o neozelandês Matthew Murphy. O cara saiu da água em estado de choque, com pedaços de coral vivo presos à caixa craniana, sem muitas perspectivas de sobreviver no fim de mundo. De lá até a capital mais próxima, seriam três dias de viagem. E como a comunicação é precária – feita apenas por um telefone de satélite - não adiantou tentar um helicóptero. Helicópteros não costumam receber chamados para ir ao fim do mundo.

Mas Deus costuma. Primeiro, enviou Macabu, Pat e David, que fizeram um socorro inicial. Depois, assumiu as mãos do médico Luiz Renato Brand, curitibano que por um desses acasos místicos passara o dia embarcado numa boat trip em frente à ilha. Matthew foi operado numa mesa de jantar, sob a luz das lanternas dos surfistas, a sangue frio. Em vez de anestesia, apenas uma cachaça para amenizar a dor.

Antes que alguém pense num inferno, eu estava no paraíso. Num paraíso real, repleto de ondas perfeitas, isolado do progresso e do crowd. Num paraíso vivo, sem os filtros do confortável mundo urbano. Passei 15 dias na ilha, metade dos quais dentro d´água, em cilindros absolutamente perfeitos, moldados por um leve terral. Estive em cenários de tirar o fôlego, sem interferência do homem, que deixariam qualquer Aruba no chinelo. Conheci nativos puros, desprovidos da maldade do mundo contemporâneo.

Seria redundante perder mais tempo falando do lado A da ilha: em todos os sentidos, Asu foi uma das mais fantásticas experiências da minha vida. Mudou meu olhar sobre o mundo. Antes do fim: o neozelandês sobreviveu. E voltou para casa a tempo de ver o seu primeiro filho nascer. Veio ao mundo Luiz Murphy, batizado em homenagem ao médico brasileiro. Matthew agora é pai como eu, mas outro dia confessou, num e-mail, a vontade que também já tive: “Quero voltar a Asu.”

Extraído da Coluna Surfe Deluxe, da edição de maio de 2010 da revista Fluir.

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Revolta na caserna

Adriano de Souza, o maior surfista do Brasil, não esconde sua afeição pela disciplina militar. Tem um irmão nas Forças Armadas, e disse certa vez que seguiria sem medo o caminho do quartel se não fosse um talentoso surfista. Tal qual um soldado enfileirado na tropa, manteve um respeito reverencial pelas altas patentes do esporte, em especial pelo general com maior número de estrelas no ombro, Kelly Slater.

Para um dia chegar ao comando, precisaria de disciplina e paciência. Durante o período na caserna, trabalhou duro. Para deleite dos observadores da guerra, aprendeu rapidamente a atirar em ondas de todos os calibres. Sua evolução em campos de batalha como Teahupoo saltariam aos olhos até de um general Eisenhower, o homem do Dia “D” na Normandia.

Volta e meia, declara que será campeão mundial, só não sabe dizer quando. É como um oficial talentoso, que aguarda pacientemente a vez de assumir o posto mais alto na grande escada da hierarquia militar. Ele sabe que, seguindo a velha fórmula do trabalho duro, a hora vai chegar. Não tem motivo para duvidar do sonho: afinal, carregou sua mochila de combate com talento, comportamento exemplar e paciência para aprender com os mais experientes.

Talvez por conta do admirável respeito aos mais velhos ele não tenha expressado insatisfação ano passado, ao perder uma batalha em casa para o general careca com nove estrelas no ombro. Talvez por isso tenha assimilado bem outras duas derrotas para o mesmo adversário em baterias disputadíssimas com somas superiores a 17. Talvez por isso tenha aceitado sem traumas perder nove vezes seguidas para o melhor surfista da história do esporte.

Outro dia, em seu Twitter, escreveu sobre futebol. E nos deu mais pistas sobre o seu respeito à hierarquia, além do amor ao Coringão: “Os meninos da Vila aprenderam a lição de casa com os mais velhos. É a lição da vida: tudo se aprende com os mais velhos. 4x2. Vai Corinthians”.

Adriano esperou para vencer, a seu modo. A primeira vitória contra o uniforme mais estrelado do esporte veio num WQS na Califórnia e, a segunda, no WT da Espanha. Duas vezes é demais. Perder numa semifinal de WT para um oficial novato mexeu com os brios de Slater, que bradou contra os juízes, atribuindo a derrota ao fato de haver dois brasileiros julgando aquela semifinal. Como se em outras tantas vitórias, ele não tivesse sido julgado por dois americanos.

Slater vai reclamar sempre que perder, já que não combinaram com ele que derrotas simplesmente acontecem. O experiente general americano não quer saber de ser derrotado para recrutas, soldados ou oficiais menos estrelados enquanto estiver na guerra pelo seu décimo título. Crise no quartel: os superiores não aceitam as regras do jogo.

É exatamente este o momento da revolta na caserna, como manda o manual do rebelde. Chega um soldado raso, indolente e, sem acreditar nessa história louca de hierarquia, derruba o poderoso general. Jadson André fez exatamente isso na batalha da praia da Vila. As estrelas douradas reluzentes no ombro do americano só instigaram o garoto abusado.

Talvez seja a hora do Mineiro, nosso único oficial com alta patente realmente reconhecida no quartel da ASP, trilhar o mesmo caminho. Como um militar que desde cedo mostra valor no quartel, ele conquistou todas as estrelas que estavam ao seu alcance: foi campeão Pro-Júnior, campeão do WQS e, antes dos 20 anos, entrou no WT. Agora, para ganhar a última medalha no peito, terá que atropelar os generais. Avante, campeão.

* Publicado na coluna Leitura de Onda, no site Waves, em 08/06/2010.

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A melhor onda da vida

O choro da sala de parto é o primeiro sopro de vida no mundo real, a primeira expressão de vontade do filho. Como quem diz : agora que me tiraram da barriga e eu estou aqui neste mundo de luzes ofuscantes cercado de gente com máscaras, quero dizer que sou cheio de vontades. A primeira delas é ir para o colo de quem me levou na barriga por nove meses, é beber o leite materno, como manda a minha natureza.

Vivi por duas vezes o milagre de ser pai. Em cada uma delas, senti um turbilhão descontrolado de emoções indescritíveis, que um amigo, o Klebinho, certa vez resumiu numa frase: a melhor onda da vida. É a descrição mais sincera que já ouvi de um pai surfista.

Entre o choro da vida e o primeiro colo, imaginei se minhas filhas pegariam onda. Sabia que o momento não era adequado, mas a ideia simplesmente veio à cabeça – saiu de algum lugar onde só o existe desejo e chegou, sem parar em blitz de lei seca, na casa da razão.

A primeira imagem é a das filhas dividindo o line-up de alguma praia perdida de águas azuis e mornas, sem crowd, numa sessão sublime em família. Eu remo de volta para o outside enquanto vejo a mais velha se entocar num tubo para a esquerda e a mais nova, na direita, voar num alley-oop. As duas, com sorriso provocativo no rosto, voltam gritando:

- Quero ver fazer igual, pai!

Ato contínuo, passa em minha cabeça um filme em corte seco dos 549 perrengues que já passei nos mares do mundo. Recuo, diante daqueles frágeis e doces pedacinhos de gente que, a esta altura, já dormem sossegadas no meu colo.

Aquele dia de quase afogamento no Leblon, com a prancha sendo triturada nas pedras e a boca me levando para alto mar, as duas ondas seguidas de caldo na arrebentação nervosa de Asu, as incríveis furadas em que todo surfista se mete em viagens para encontrar as ondas certas e os tantos outros perigos que rondam o esporte: não há como garantir, tanto no surfe como na vida, um filme editado apenas com os melhores momentos.

Relaxei, e vi que aqueles sonhos eram meus, e não delas. Como um pai surfista, eu deveria deixar que elas tivessem seus próprios sonhos, sejam lá quais forem. Afinal, tanto no mar quanto na vida, uma onda nunca é igual à outra. Há ondas parecidas, mas, iguais, não.

Se um dia elas quiserem realmente pegar onda, eu estarei lá para ensiná-las alguns atalhos importantes. Se quiserem ser jornalistas, também vou poder ajudar. Se quiserem ser cientistas, astronautas, poetas, bailarinas ou cantoras – e se essas opções ou quaisquer outras forem os seus sonhos – estarei lá, disposto a tudo para torná-los realidade.

Muitas alegrias depois, chegamos ao Natal do ano passado, em Búzios. Ana, aos cinco anos, brinca de descer ondas com um pequeno bodyboarding o dia inteiro. E insiste: pai, me empurra nas maiores! O velho surfista, entre emocionado e preocupado, lança a filha com cuidado nas intermediárias. Tá de bom tamanho, para começar.

Noutra viagem, desta vez para Itacaré, deixo-a com a turma da recreação do hotel para cuidar da filha caçula. Quando volto, um casal de amigos me conta que ela deu um show na aulinha de surfe. Pegou sete ondas até a beira de longboard. A base, o estilo bonito e o esforço para botar no corte lembram os rolés de skate que ela dá com o pai desde os dois anos.

Deixei a pequena tão à vontade para decidir o próprio caminho que eu, um pai apaixonado pelo mar, sequer estava perto em sua primeira vez em pé na prancha. Restaram, para meu deleite, algumas fotos feitas por um casal de amigos do Sul. Quando cheguei à praia, todo mundo veio me perguntar se ela já surfava há tempos. Pensei que, de uma certa maneira, sim.

Todo orgulhoso, assuntei com a própria estrela como tinha sido a experiência:

- Ah, pai, foi maneiro – desconversou, para logo ir catar conchas com um amiguinho.

Ana completa hoje 6 anos. Talvez ela seja surfista, talvez não. Talvez Lara, a caçula espoleta de temperamento forte, peça uma prancha no Natal de 2020. Talvez nada disso aconteça. Uma se torne pesquisadora, a outra bailarina. O que importa mesmo é viver com paixão, com uma vontade de viver tão genuína quanto a de um bebê que pede o leite ao nascer.

Coluna Leitura de Onda, publicada no site Waves em 02/06/2010

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Blog de notícias sobre as ondas e seus personagens, escrito com palavras salgadas pelo jornalista Tulio Brandão.
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