Surfe deluxe

Diário de um amador: Bali 08

9.7.08


A sessão diário de um amador publica hoje os escritos do administrador e surfista André Somaglino. O cara passou os últimos dez anos indo para a Indonésia sempre que sobrava tempo e dinheiro. Na última viagem, voltou ao início de tudo: fez a básica surftrip para Bali, só para Bali. Soma apresenta o céu e o inferno da ilha hindú, com direito a pico secreto e tudo. Segue o relato:
Bali continua mágica. Essa foi a constatação que eu pude tirar da viagem. Mas não se engane: ser mágico não significa ser simples. Desde a primeira vez que estive em Bali, as coisas mudaram muito. Em 1994, chegar em Uluwatu era uma aventura. Hoje, é um pico quase urbano.

No passado, tive a oportunidade de ver alguns bons surfistas de fundo de areia não se encontrarem nas bancadas de Bali. A adrenalina do lugar e a energia da ilha Hindu levava os caras a um tipo de miopia, como se eles não enxergassem ondas na frente deles. Era comum também presenciar finais de tarde com 2 ou 3 cabeças na água, em ondas perfeitas. Eu ficava do alto do morro, sem pressa de cair, vendo-as brincando de se esconder nas placas perigosíssimas de Ulu. Não poderia imaginar que eu estava vivendo uma coisa única, um momento que dificilmente iria se repetir.

Com o passar dos anos, fui cada vez mais me afastando de Bali. Aquele era, com certeza, o lugar onde eu pegava menos ondas. Tinha a clara impressão de que o número de pessoas e o desenvolvimento da ilha não me deixariam surfar ondas como no passado. Bali, então, se tornou um lugar de passagem, de acesso a outras ilhas e ondas.

Maio de 2008. Programo mais uma vez uma viagem para a Indonésia e, depois de muitos anos, decidi dar uma nova chance a Bali. A ilha seria novamente o meu destino único na Indonésia. Eu acharia um jeito de curtir ao máximo e tirar proveito do que me fosse presenteado pela ilha.

Cheguei na ilha dia 13 de maio com uma boa ondulação a caminho: 2,9 metros com 16 segundos. Primeira bateria em Canguu, que cá entre nós é muito perfeito. Excelentes diretas, ondas de um metro e meio com bastante parede, boas para arregaçar com a prancha maroleira. Canguu é a onda de sonho para manobras, tudo dá certo naquela onda. Tinha esquecido disso, já que a última queda em Canguu fora em 1998...
No dia seguinte, a tal ondulação tinha chegado. Parti para uma bancada que achava ser meio lenda, que eu escutei falar por 14 anos, mas jamais tinha visto quebrar de verdade. Da praia, o visual era incrível: ondas de um metro e meio, dois na série, correndo por uma grande bancada de coral, talvez por uns 400 metros - o equivalente a umas três ou quatro vezes do Pontão do Leblon até o Posto 12. Escolhi minha 6,4 com uma quilha maior.

Vi um surfista saindo do mar e fui falar com ele:
- Pode me dar uma dica de como entrar?
- Rema de frente para a onda, que a correnteza joga lá no canal.
- Tá bom? (Realmente o pico era longe e cabia a pergunta)
- O negócio lá fora tá incrível. Moro no Havaí e posso te dizer que tá muito divertido lá fora.
- Então por que você tá indo embora? Tá grande?

- Dois pés havaianos por trás, não tá grande, mas tá ficando muito raso e perigoso. Tá vendo aquela pedra para fora? Quando ela sair inteira, tome muito cuidado com a sessão.

Joguei-me no mar, e procurei não pensar em tubarão nem no possível cansaço da remada até o pico. Fiquei mastigando as últimas palavras do havaiano: “dois pés” e “raso”. Temos todo tipo de surfista neste mundo, aquele tinha medo de onda rasa. Outra coisa: dois pés era a mãe dele!

A correnteza me jogou cem metros depois do fim da onda, e tive que remar uns trezentos metros vendo altas ondas comendo na bancada. O desempenho dos locais era inacreditável. Lá fora tudo mudou! Um mar turquesa, condições espelho, sem um pingo fora do lugar, ondas de quase dois metros que primeiro faziam um pico por trás, bem difícil de interpretar e conectar, mas se você passasse a primeira sessão, bem, depois a onda acertava na bancada e o que vi foram tubos rasos e cinematográficos. Talvez a sessão de onda mais harmônica que já surfei na vida: tudo no lugar.

Foram 14 anos sonhando com isso.

No dia seguinte, ulus – ulus – ulus. Finalmente fui a Uluwatu. É um lugar que emociona. Hoje Ulu tem estacionamento, hotel em cima do costão, e ficou meio sujo. É o crescimento não planejado, triste mesmo. Mesmo assim, Ulu mantém sua energia incrível. Tem onda todo dia e, quando acerta, é umas das melhores ondas da Indonésia. Isso que eu estava precisando redescobrir. A tal miopia, ou pessimismo, sei lá, tinha me pegado também. Eu não acreditava mais nas ondas de Uluwatu. Entrava no mar pensando no crowd, no hotel, nem parava para entender onde eu estava: o tubo continua ali, no mesmo lugar.

Peguei ainda um dia numa outra onda que foi incrível, com tubos e mais tubos de um metro e meio perfeitos. Essa onda tem sido muito fotografada. Apesar de tudo que se fala, surfei duas ondas novas, reencontrei outras do passado e redescobri o prazer de surfar Uluwatu. O crescimento de Bali está além da minha compreensão, não acredito no crescimento econômico como melhoria de vida.

Tenho tristeza ao ver o que está acontecendo em Bali, mas isso não me impede de ver o que há de melhor naquela ilha e, de certa forma, agradecer por tudo através deste relato. Obrigado Bali e às pessoas que me aproximam deste lugar.

Marcadores: , , ,

Surfe Deluxe
Blog de notícias sobre as ondas e seus personagens, escrito com palavras salgadas pelo jornalista Tulio Brandão.
Participe!
Surfe Deluxe divide a onda. O blog é aberto à participação dos leitores, com textos e fotos. Quem tiver história ou imagem, mande para surfedeluxe@gmail.com
Créditos
Foto de fundo: Saquarema, por Fábio Minduim / Layout: Babi Veloso
Feeds RSS
» Clique aqui e receba o blog no seu agregador favorito
» O que é RSS?

Surfe Deluxe, por Tulio Brandão :: tulio@surfedeluxe.com.br :: Assinar o feed