23.5.08
Em 1983, eu tinha dez anos. Era um tipo tímido, franzino, ombros curvados para dentro, que de forte ostentava apenas as pernas, herança genética somada à infância gasta no futebol de salão do Flamengo. Nas férias de verão, minha família se despencava para Cabo Frio, onde Vô Átila e Vó Maria tinham casa. Eu mal ia à praia.
A casa ficava no bairro de São Cristóvão, perto de uma pequena favela. Foi na parte pobre da vizinhança que eu aprendi a soltar pipa, a passar cerol, a correr do carro da polícia sem saber o motivo. Foi lá que eu me tornei um grande amigo dos irmãos Oziel e Oséias.
Oséias era o mais velho. Um bom atacante nas peladas do terreno baldio ao lado lá de casa, mas entrou para o crime muito cedo. Ficou conhecido como o assaltante "di menor". Seu nome vivia nas páginas de polícia dos jornais locais. Era procurado pela polícia. Lembro da imagem do quarto dele apinhado de aparelhos de som, de roupas e tralhas que contrastavam com a parede descascando, com a pobreza. Por vaidade, pichou seu apelido no muro do barraco. Foi encontrado em casa por seus algozes, e morreu assassinado. Meses antes, ainda almoçava com a minha família. Lá de casa, jamais levou nada. Pelo contrário, só deixava alegria.
Oziel tinha a minha idade. Depois da morte de Oséias, ficou ainda mais próximo da minha família. Vivia descalço, sem camisa e com uma bermuda velha, mas não passava aperto. Quando queria uma água de coco, escalava os antigos coqueiros gigantes do Coqueiral. Retirava a casca dura com os dentes. Disputava com os passarinhos as amendoeiras de rua. Era um mestre na pipa. No mar, mostrava vontade, mas esbarrava na natação débil.
Certo dia, no verão de 83, Oziel apareceu lá em casa com uma prancha velha, meio tosca, toda lascada. Disse que tinha achado na rua. Meus esportes eram o futebol e a bicicleta, mas a idéia de ficar em pé no mar já me atraía. Ele queria vender a bóia, paguei com uma nota de um cruzeiro. Dei a grana na hora, com o que eu tinha pro lanche. Era uma fish, swallow, duas quilhas de madeira (pouco comuns na época), com um desenho que mais tarde descobri ser réplica do modelo do Larry Bertlemann - o símbolo da Pepsi em pé.
Corri para a Praia do Forte e, na primeira onda, fiquei em pé. Um sonho. E um ponto de mutação. Aquele momento influenciou para sempre a minha vida. Boa parte do que sou e do que faço - inclusive o blog que você lê agora - está definitivamente ligada à experiência vivida no primeiro dia com a minha primeira prancha.
Dia desses, na cantina do Globo, a prancha de 83 voltou num papo com o subeditor de Arte Fernando Alvarus, grande amigo que surfa há muito tempo mais tempo que eu. Falei da minha "Larry Betlemann" porque vou competir neste fim de semana no Mitsubishi Fish Classic, um evento de pranchas fish promovido pelo Carlos Burle e pela Vizoo. Contei ao Alvarus que só surfei com esse modelo há 25 anos, quando tive minha única bóia rabo de peixe.
Pois ele me contou que também foi dono de uma réplica do Larry Berttlemann nos idos de 83. Era uma prancha comum na época, todo mundo queria fazer aquele desenho. A dele foi feita em casa, a partir de um bloco de longboard detonado. Típica história de um cara que, mais tarde, foi parar num departamento de arte. O outline foi feito no olho, em folhas de jornal emendadas com cola, a partir das fotos da prancha do havaiano. A laminação foi feita na casa de um amigo do Arpoador, chamado Márcio Esquisito. Uma placa de compensado achada na rua serviu de matéria prima para as quilhas. Alvarus lembrou do primeiro dia que caiu com ela, quando deu um cutback redondo e, no caminho, descobriu que tinha rabeado o Esquisito. O bico do amigo abriu o primeiro de uma série de rombos espalhados pela prancha.
Meu camarada contou ainda que, meses depois da estréia, levou a bóia para uma viagem à Região dos Lagos com amigos. Em algum lugar entre Cabo Frio e Búzios, naquele verão de 83, todas as pranchas voaram do rack. Ninguém percebeu.
Sorte do Oziel, sorte minha.
Alvarus entendeu tudo quando me viu de olhos arregalados, sem acreditar no que tinha acabado de ouvir. Uma história inacreditável, mas verdadeira. Falei um pouco sobre o meu amigo de infância de Cabo Frio, que por um assustador acaso da vida achou a prancha dele largada na estrada e mudou o rumo da minha vida. Como o irmão, Oziel acabou seguindo pelo caminho errado. Morreu assassinado pouco depois de ter me vendido a prancha. Tenho certeza de que ele teria gostado de conhecer o Alvarus. E talvez até se tornasse um bom surfista. Para sempre.
Nota: Alvarus fez a ilustração acima antes de saber da incrível coincidência.
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